Manaus. “Não é propriamente o meu destino de sonho”, disse eu à hospedeira de bordo quando aterrámos. “Olhe que ainda se vai surpreender”, disse-me ela, de seguida. Devia ter uns cinquenta anos, era alta e esguia e sem perceber muito bem porquê lembrava-me o Natal. “Duvido” – retorqui.
À porta do Aeroporto Internacional Eduardo Gomes já me esperava Anderson Teodoro, de bigode farto e um cartaz na mão com meu nome. Estava encostado a um jipe verde-escuro de capota aberta e assobiava-me ao longe. Entrei no carro.
Chegamos à Floresta Amazónica em pouco tempo, Teodoro pediu-me que me instalasse numa cabine enquanto ele ia preparar o barco.
Entrei na cabana e olhei em volta à procura do meu pai. Quando o vi, estremeci. Estava velho, o cabelo cinza escuro molhado por cima da camisola desbotada. Sorria-me exageradamente e envolveu-me em abraços desmedidos. Agradeceu-me por ter vindo, prometeu-me que ia gostar da viagem. Suspirei.
Entrámos no barco que Teodoro entretanto preparara. Sentei-me a um canto e pus um chapéu de montanhismo na cabeça. O ar estava – e lembrei-me como se fosse hoje – emundado de centelhas que pareciam transformar-se em espuma quando lhes tocava. Estava quente e estupidamente húmido. Cheirava sobretudo a orvalho e algodão-doce. Quando Teodoro começou a remar, senti que todos os meus cinco sentidos se conjugavam num só, uma mixórdia de emoções que nunca, até hoje, consegui explicar. Descrevi essa sensação, anos mais tarde, como uma espécie de magia que nos assola de uma forma surpreendentemente positiva.
Cerca de vinte minutos depois, chegámos a terra. Levantei-me, ainda ligeiramente abalada, e caminhei.
O meu pai pediu-me que deixasse com Teodoro todos os meus pertences e eu acedi. Caminhámos por entre sequências de árvores que, sem que eu consiga explicar, pareciam cantar-me ao ouvido. Vi, por cima do ombro, Teodoro acenar-me. Andámos quase um quilómetro e as pernas começaram-me a doer realmente, quando passámos de um caminho em linha reta para uma subida colossal. O meu pai segurou-me o braço, quando nos aproximámos de um par formoso de rochas gigantes. Ouvi o som estridente e assustei-me.
Dei um passo em frente e vislumbrei uma bonita cachoeira, como o meu pai diria, que fazia a água dançar de uma forma que nunca vi.
Ainda hoje não consigo explicar bem o que aquilo para mim significou, mas sei que foi das melhores sensações que experienciei. Foi a melhor viagem da minha vida. Manaus.

Beatriz
15-12

Tubérculos são cofres naturais
de energias puras e vitais.
Energias, limpas e não mortais
e que na mão de um chefe se tornam reais.

“Pomme de terre” diz a alma francesa,
são produtos indispensáveis na cozinha portuguesa.
Em sopas e cozidos novos e velhinhos,
não a dispensam à mesa com certeza.

Evidente utilização, mas na forma
pouca perfeição. A sua norma
não encanta mas transforma a lembrança
de quem um dia já foi criança.
                                             João
15-12

Corre,
mas não corras demais que coxeais
Ri, 
mas não rias o bastante que anseias
Chora,
mas não chores de cicatrizes passadas
nem lamentes as aventuras desventuradas
que te consomem desagradavelmente
Morre de amores,
mas não morras demasiado
que o amor é danado
e não tardará em voltar
Teme,
mas não temas em arriscar
que o que parece longo desaparecerá
como o dia para a noite
a esquerda para a direita,
a vida para a cova estreita
Vive,
mas não vivas em prol do que é incerto
Berra,
mas não berres audivelmente
para o chão não latejar
e caíres desamparado
Sê,
e sê o mais que puderes
sem medo do que é certo ou errado

Beatriz
24-11


Tu resolves fugir de mim
deixando para trás tudo o que passámos,
partes as chaves que outrora nos uniram
com a intenção de nos dispersarmos.
A história do nosso passado
ocorreu a partir de um determinado erro
que nunca pôde ser ultrapassado
E que resultou no meu aferro a ti.
A ciência do amor
limita-se a uma antinomia de sentimentos
estruturado de mentiras e clamor
e resultando em ferimentos.
Bruno
24-11


Uma real confusão

O meu corpo embateu com o chão, fazendo uma nuvem de areia erguer-se pelo ar. Levantei-me e quase voltei a cair para o lado quando me apercebi da fatiota que tinha vestida. O que é que eu estava a pensar quando saltei por aquela janela? Isto é o que acontece quando se passa demasiado tempo a estudar História…
Sacudi o meu vestido cheio de folhos e de corpete apertado, e dei um leve suspiro antes de olhar em redor. Estava no meio de uma feira; havia tendas de comerciantes por todo o lado, carroças carregadas de frutas e vegetais e dançarinas que abanavam os seus corpos ao som da música medieval.
Caminhei por entre a feira repleta de gente. As roupas e costumes comprovavam os meus pensamentos. Ao longe um castelo enorme feito de pedra. Misturei-me entre as pessoas e saí junto ao caminho para o castelo. Apesar de não entender o que passava, estava a adorar tudo em redor... Talvez me mude!
Atravessei uma parte e parei junto à porta do palácio. Bati na mesma, esperando que alguém tivesse pena desta pobre rapariga e a viesse socorrer, mas não!
- Quem vem lá? – o guarda pergunta do outro lado da porta baixando a pequena portinhola e espreitando por lá.
- Hm.. Olívia. – murmurei.
- Olívia quem? – voltou a questionar.
- Olívia Benson.
- Pois… Olívia Benson não está na lista… por isso Donzela, pode ir de volta para d’onde veio. 
- O problema é esse, é que eu… - fui interrompida pela portinhola a ser fechada.
Suspirei frustrada e caminhei para o jardim do lado esquerdo do castelo, sentei-me junto a um carvalho virado para o rio e atirei algumas pedras para dentro do mesmo. Fechei os olhos e pensei nos últimos minutos. Como é que eu vim aqui parar? Eu estava apenas a estudar para o exame final de História, fui à janela e puff! Aqui estou eu, a vaguear pela idade média sem poder fazer nada para voltar para casa.
No meio de tanto ruído causado pela minha mente, ouvi passos aproximarem-se de mim. Levantei-me e olhei na direção do barulho.
- Está ai alguém? – perguntei receosa.
- Desculpe, não queria assustá-la. – uma voz masculina soa. Era grossa e rouca mas deu-me uma sensação de relaxamento instantânea.
- Se não me queria assustar, porque continua escondido? – questionei.
- Tem toda a razão… - falou baixo, saindo de trás de uma árvore.
Observei a sua figura. Era alto, de pele branca com um leve tom bronzeado. Tinha vestidas as roupas habituais, de alguém da realeza. Na sua face havia uma barba pequena que lhe ficava lindamente. As suas feições bem esculpidas e os seus olhos castanho escuros levaram-me a concluir que era provavelmente o príncipe do reino.
- Qual é a sua graça? – perguntou encostando-se à árvore  que estava de frente para mim. 
- Olívia. Olívia Benson. – disse.
- Olívia… é adequado – olhou-me de alto a baixo.
- Desculpe?! – olhei-o indignada.
O rapaz deu uma gargalhada. – Estou apenas a meter-me consigo! Sou o Edward. 
- Não será príncipe Edward? – questionei erguendo uma sobrancelha.
- Foi assim tão óbvio?
- Um pouco – ri-me.
- E eu a pensar que ia conseguir dar-me com alguém sem ser tratado como membro da realeza. 
- O que quer dizer com isso? Lá por ser da realeza não quer dizer que tenha de o tratar de forma diferente das outras pessoas. E para além disso… ser da realeza é muito fixe!
- Fixe? – questionou.
- Desculpe, esqueci-me de que não sabe o que é… - cocei a nuca. – Quer dizer que é uma coisa boa.
- Oh… obrigado. – sorriu. – Gostava que todos pensassem como a donzela. É que é um pouco difícil dar-me com alguém aqui… parece que das duas uma… ou têm medo e não se dão ou querem aproveitar-se da minha riqueza e poder.
- Parece que alguém está a precisar de um chocolate. – sorri, fazendo a atenção de Edward cair em mim. – Não é o único com problemas…
- Então?
- Pois, eu não sou daqui… E até é cómica a maneira  como aqui cheguei.
- Pode partilhar?
- Foi por uma janela.
- Por uma janela?
- Sim – ri-me.
- Queira explicar-se.
- É assim… Eu venho do século XXI, que, como sabe, é muito mais para a frente. Estava a estudar para o meu exame final de História. Fui à janela e puff! Aqui estou eu.
Edward olhou-me por vários segundos. – Sente-se bem Olívia?
- Sinto-me ótima!
- Tem a certeza?
- Tenho - assenti – Eu agradecia uma ajudinha.
- E como é que eu poderia ajudar?
-Primeiro, corte o vós. Na minha era isso já não se usa, e, segundo, eu preciso de voltar para casa.
- Não entendo onde é que eu me enquadro ai!
- Talvez conheça alguém que me possa ajudar!
Edward olhou-me pensativo. – Talvez.
- Então isso é um sim? 
- Nunca ajudei um estranho antes. E já ajudei muita gente!
- Hei, eu não sou um estranho. Sabe o meu nome e por que razão aqui estou.
- Pronto, já percebi... Eu ajudo!
- Obrigada! – sorri.
- Vamos lá então! – levantou-se.
- Tão impaciente… - murmurei e levantei-me.
Edward caminhou pelo meio da floresta e eu segui-o. Entrámos no castelo pela porta das traseiras, onde ficava a cozinha. 
 Passámos pelo meio de muita gente, todos eles se curvavam à passagem de Edward pelo seu meio. Acho que me podia habituar a este estilo de vida. Afinal, a época medieval é a minha favorita.
- Vamos até ao aposento do meu pai. Ele vai poder ajudar-nos.
-Do… R-R-Rei? – olhei-o.
- Ficas nervosa quando falo do meu pai e ficaste normal comigo? – ergueu uma sobrancelha.
- Oh… é diferente – dei de ombros
-Porquê – perguntou.
-Oh esquece…vamos ou não?
- Vamos … vamos
- Subimos várias escadas até chegarmos a um corredor. No fim, dois guardas parados à porta olham-nos e vigiarem todos os nossos movimentos.
- Boa tarde – Edward- disse
- Vossa alteza – curvaram-se, dando-nos passagem.
Entrámos no quarto. O rei estava sentado na secretária assinar qualquer coisa. Quando Edward fechou a porta, a atenção do rei caiu sobre nós. 
-Ah, Edward por aqui? E quem é atua amiga?
- Pai, esta é a Olívia. Ela precisa de ajuda.
-Oh … e como posso ajudar?
-Bem… - contei-lhe a minha história. Ao início não acreditou, mas depois de lhe dar algumas provas (como datas futuras) dispôs-se a ajudar-me.
- Bem, podes ir ao feiticeiro do reino. Ele saberá o que fazer.
- Muito obrigada, Vossa Alteza.
- Não agradeças – só tenho pena que não fiques. Aqui o Edward podia casar contigo.
- Não obrigado. Dissemos nós ao mesmo tempo.
- Ai o amor jovem…
Fizemos ambos uma careta e saímos dos aposentos. Descemos a escadaria toda até ao fundo. Chegámos a uma porta de forro e entrámos. Em várias prateleiras, vários frascos. No canto, um homem encostado à parede que se aproximou analisou-nos.
-O príncipe? Por aqui?
-Precisamos da sua ajuda.
- E eu em que posso ajudar?
Expliquei tudo novamente se calhar devia escrevê-lo e mostrar para poupar saliva.
-Ah, eu posso ajudar.
Do nada arrancou-me um cabelo.
-Au! – disse alto.
-Desculpa, foi sem intenção, mas precisava dele – riu-se.
Rolei os olhos e olhei Edward. Aproximamo-nos do caldeirão. Ele disse umas palavras loucas e fez magia. Bebi a mistura.
- Agora é só saltares aquela janela. Se foi uma janela que te trouxe, é uma janela que te leva.
- Respirei fundo aproximando-me.
- Bem, parece que acabou – sorri olhando Edward – obrigada pela ajuda!
-Obrigada pela hora e meia de amizade – sorriu – toma! Entregou-me o seu anel como recordação.
- Toma. – Deixei-lhe o meu colar – abracei-o e saltei.
Abri os olhos, novamente de volta, vendo o meu quarto e tudo como tinha deixado. Meti o anel na mão, fechei os livros e apaguei a luz. Chega de estudo por hoje. 
Márcia
24-11

IRONIA da VIDA

Foi no dia da morte da minha mãe que percebi o quão irónica esta vida é. Inicialmente, fomos a novidade da aldeia, as mais faladas, as aberrações. Eu era a pobre filha da mulher com quem nenhum homem quis casar, era filha de mãe solteira, era filha de uma mulher falada por toda a gente. Quando entrava na igreja, ao domingo, as senhoras de família retiravam-se e levavam consigo os pequenos que, ensinados desde sempre a respeitar a palavra cristã, menosprezavam uma infeliz rapariga e sua mãe que nada haviam feito para merecer tal punição.

Quando um aristocrata rico – Dom Filipe de Castanho – apareceu na aldeia com os seus dezassete homens vestidos a preceito, eu percebi que estava destinada a mais do que aquela vida mesquinha.

Dom Filipe procurou por todas as casas uma pessoa que nunca chegara a conhecer, de quem não conhecia um único traço do rosto. Dotado desde sempre por pensamentos liberais, não vacilou nem por um instante, quando me apresentou à corte como sua filha, uns dias depois, em Lisboa. Foi a primeira vez que viajei de carruagem.

Três meses depois, a mãe regressou à aldeia onde estaria destinada a terminar os seus dias. Eu fiquei na corte, recebi educação e etiqueta e comecei a lavar-me com mais frequência e a pôr pó-de-arroz nas maçãs do rosto. Aprendi a forma correta de cumprimentar as pessoas e comecei a frequentar os clubes de chá das filhas das burguesas. Uma tal Petra foi a que sempre me chamou mais a atenção. A forma como se descalçava nas reuniões, como desapertava a cinta minuciosamente apertada pelas aias e o jeito descomprometido como falava das coisas suscitava em mim sentimentos de desaprovação que nunca pensei ter. Um dia, quando todas as outras filhas de burgueses saíram para andar de cavalo, chamei Petra à parte para lhe perguntar o que sempre tivera curiosidade de saber:

- Por que te comportas de forma tão desadequada?

A resposta que Petra me deu, ainda hoje ressoa pelo mais íntimo de mim.

- Porque, cara bastarda, nesta vida só podes ser uma coisa. Eu sou o que quero ser!

Foi depois de ouvir isto que comecei a repensar a minha existência. E foi então que percebi: eu não queria ser aquilo!

Aproveitei um descuido da ama e meti-me numa carroça que ia partir para o centro da cidade. Quando, ao longe, avistei a aldeia onde cresci, saltei da carruagem e procurei por todo o lado a minha casa. Avistei-a, por fim, ao longe, num sítio que estranhamente já não recordava assim. Entrei pela porta entreaberta e chamei pela mãe. Ia pedir-lhe desculpas, dizer-lhe que me tinha arrependido da minha escolha, que preferia ser pobre a viver sem ela.

Silêncio.

Não vi a mãe em lado nenhum. A janela da cozinha, mais à frente, emanava um brilho invulgar. Aproximei-me, esperançosa de, ao espreitar por entre o vidro, encontrar a minha mãe no quintal, a estender a roupa, a regar as plantas…

Mas não.

Quando olhei pela janela, estaquei, gelada. 

Do outro lado do vidro, vislumbrei a minha mãe, deitada no chão com um buraco vermelho escuro na testa. Olhei em volta e vi um cartuxo perdido na relva, completamente abandonado. Pobre mãe, se foi morta pela espingarda ou pelos comentários ruidosos que ouviu quando a deixei, não sei. Pobre mãe, partiu sem saber que eu havia regressado. Pobre mãe, partiu a achar que a tinha abandonado. 

Foi no dia da morte da minha mãe que percebi o quão irónica esta vida é.
Beatriz
8-11