Cheirava-me a tabaco.
A humidade do ar misturava-se com aquele odor e
criava uma fragrância quente e bolorenta. Cheirava-me a frustração.
Era um corpo magro, demasiado esquálido que consumia cigarros,
uns atrás dos outros.
Uma mulher fina, descoordenada, os ossos roçavam-se-lhes
na pele seca e gelada. O fumo que expelia pela boca era talvez o contacto mais
quente que tivera em muitos anos. A opacidade do ser corpo e da sua matéria
sentia-se ao longe e perturbava-me. Estava sentada numa mesa ao seu lado a
observá-la. Sentia-a vazia. Transpirava calores frios e urgentes. Tudo nela era
como um grito mudo que pedia ajuda.
Vê-la, doeu-me. Ela levantou-se. Arrastava os pés pelo chão e fumava um outro
cigarro. O terceiro. As pernas não se tocavam e pareciam desmontar-se enquanto
andava. Ela desapareceu no escuro de uma rua e nunca mais a voltei a ver.
Desapareceu. Desapareceu a desaparecida. Doeu-me. Marcou-me. Continuei a beber
o meu café.
Beatriz Ramos Cardoso 11º.E
Pergunto-me todos os dias o que nos rege, o que faz tudo isto andar para a frente, qual o verdadeiro cerne da vida. Aquela carta não me trouxe respostas mas mostrou-me a outra parte das perguntas.
Foi há
relativamente pouco tempo. Corria na praia, como faço quase todas as amanhãs, –
privilégios de quem mora à beira mar – e o ar estava estranhamente quente,
cortava a cara, enquanto corria.
Lá estava
ele, ao longe. Aquele ponto brilhante, cravado na areia, a balançar com a
ondulação. Estava à minha espera, sei-o. Parei para ver melhor – podia ser um
relógio, uma aliança – e vi aquele pedaço de vidro verde azeitona coberto de
espuma e areia, a brilhar, a dançar com a força da água.
Agarrei a garrafa com cuidado, analisei-a com cautela. O vidro
estava quente e riscado pelas conchas e pelas rochas. Tinha acabado de dar à
costa para vi para vir ao meu encontro. A praia estava deserta, ela sabia por
quem procurar.
Dentro da
garrafa, por baixo de uma rolha de cortiça roída, uma mensagem incrivelmente
seca, enrolada e presa com um frio de ráfia. Sentei-me na areia, a água e a
espuma a acariciar-me os pés descalços.
Olhei em
frente. Não vi ninguém, nenhum barco, nenhum surfista. Via só um manto azul e
uma bola amarela a cortar a linha do horizonte. Era uma mensagem do oceano, da
vastidão.
O fio
partiu-se, mal lhe toquei e desenrolei a mensagem, com cuidado. O sol
aquecia-me os olhos cansados, como que permitindo-me ver cada palavra com mais
precisão. O marulhar embalou-me e comecei a ler, devagar.
«Não
confio em Deus, nas energias nem em nada parecido, mas confio na água e na
força da maré e sei que ela levará esta mensagem, ao seu verdadeiro destino.
Não sabia a quem recorrer, por isso recorro a ti, leitor. Ouve-me quando mais
ninguém o soube fazer. Estou no meu barco, a 320km da costa e recorri a esta
folha enrugada para abrir o meu coração e dar-lhe algum espaço.
Faz hoje
1 ano que a levaram e não há um dia em que não pense no quão injusta esta vida
– como eles lhe chamam – é. Tê-la visto escapar-se deste mundo naquele suspiro
foi a pior coisa mais atroz que já senti. A força a desmoronar-se-lhe dos
dedinhos pequenos, os olhos a apagarem a cor natural da vida, a luz da sua
expressão a perder-se para uma névoa cinzenta. Não sei o que se passa comigo
desde, então, mas não consigo sentir absolutamente nada. Sinto-me a boiar num
corpo que não é meu, sinto a realidade fugir-me dos olhos, os objetos a ficarem
cada vez mais distantes das minhas mãos. Tenho um peso nas minhas pálpebras que
insiste em fechá-las e um monstro muito escuro e aterrador a saltar-me na
cabeça, nos meus pensamentos. Estou esmagado por algo que desconheço, maior que
eu, e não percebo nenhum sentido nesta coisa moribunda a que chamam viver.
Tiraram-me a única coisa que me prendia à terra, a minha raiz foi-me cortada
sem misericórdia e não sei mais como me segurar em pé. Pensei
mandar-me à água juntamente com esta garrafa, não tenho nada a perder. Não
posso mentir, a hipótese parece-me muito tentadora. Acabar-se-ia esta dormência
e este marasmo e encontraria, quem sabe, a minha menina, envolta naquele pano
branco que nunca a devia ter embrulhado. Mas não vou fazê-lo, não quero dar
esse prazer à identidade manhosa e mesquinha que comanda isto tudo.
Não há Deus, que não há fado, não
há justiça nenhuma nem tão pouca uma razão que nos prenda aqui, somos prenda
aqui. Somos corpos. Somos matéria. Somos todos a mesma carne cujo único
propósito é alimentar os bichos e parasitas que moram debaixo dos nossos pés.
Não há Deus, não há nada. Há vileza
em todo o lado, nada mais. No final de contas, ternos de perpetuar e adubar a
terra sobre a qual caminhamos.”
Não sei dizer o que aquela carta me
fez sentir. Senti-me injustiçada, apunhalada pelas costas, senti cada palavra
daquele desconhecido emissor. Tenho imensas perguntas na minha cabeça, nenhuma
com sentido. Tenho uma linha salgado a escorrer-me pela face e quando me chega
aos lábios, percebo-lhe o caráter azedo e salgado.
Olho em
frente. O sol ergue-se com facilidade por cima da camada de oceano
assustadoramente grande.
Brilha, lá de cima, como todos os
dias.
E, envolta no doce marulhar e na
espuma condensada da manhã, percebo que isso é tudo quanto sei nesta vida. Nada
mais.
Beatriz
O Autocarro Literário
A
mãe dizia que era frescura mas ele sentia-o correr nas suas entranhas desde o
dia em que nascera. Era mais do que ele próprio: era aquilo de que era feito,
era a sua matéria.Sentia-o nas aulas de Português, nas suas divagações
profundas, em cada linha de um livro que lia. Ele não o sabia explicar, mas
descrevia-o como uma corrente de ligaduras mais forte que todo o seu esqueleto,
sem a qual não podia viver. Era colossal, era-lhe transcendente.
Dado que a família não tinha condições para lhe comprar os livros que queria, ele
aprendeu a guardar os poucos centavos que a mãe lhe dava, quando ia comprar o pão. Ao fim de quase um ano, conseguiu, finalmente, comprar um exemplar usado de uma das primeiras edições d’A Terra Sonâmbula, de Mia Couto. Lia-o no autocarro a caminho de casa e na viagem para a escola e, como tinha medo que a mãe lhe afinfasse com a fivela por causa das frescuras, escondia o livro por baixo do último assento da camioneta num fundo falso que ele próprio fizera para proteger os seus cadernos de poesia dos olhares curiosos e preconceituosos dos seus pais e irmãos.
Como a viagem ainda era longa, ao fim de
umas semanas já tinha acabado a leitura. Guardou todas as anotações sobre as
palavras que desconhecia, escondeu o livro – que conservara religiosamente – no
último assento e, depois de sair do autocarro, subiu a pé os quatro quilómetros
que davam para sua casa. Era uma subida muito íngreme e cheirava a papas de
aveia queimadas e tabaco mastigado. Era um cheiro de tal modo insuportável que
a subida se encontrava quase sempre vazia, à exceção dos indigentes, que
cambaleavam pelos passadiços a arrastar as pernas e dormiam embrulhados em
pedaços de cartão molhado e mofado de tal forma que nem os ratos se aproximavam.
Tudo aquilo era um quadro triste e cinzento, mas cada vez mais o admirava com
um olhar mais frio que penoso.
Ao cimo da rua, rodeado por dois montes
gigantes de esterco, encontrava-se a sua casa: era uma casa de tijolo mordido,
sem cor e com tecidos velhos em cada uma das janelas. Ele entrou pela porta
entreaberta, cumprimentou os irmãos que brincavam no chão cimentado e foi até
ao seu quarto. Pousou a mochila sobre o colchão arranhado onde dormia e, depois
de guardar as suas anotações no bolso, saiu de casa prometendo que não
demoraria e foi em direção à biblioteca municipal. Lá, sentou-se numa mesa
maciça e consultou um dicionário de Língua Portuguesa que costumava usar e a
que dava o nome de António Emílio, em homenagem ao seu escritor favorito. Em
tempos menos bons, era António Emílio que lhe estendia a mão e que lhe permitia
abstrair-se de tudo à sua volta. Depois da escola, ou de todas as vezes que a
mãe lhe dava com a fivela do cinto, era em António Emílio que ele se refugiava
e com quem matinha conversas de horas. António Emílio tinha o hábito recorrente
de lhe ensinar palavras difíceis, de lhas explicar e de o ajudar a falar
melhor. Era, para ele, um verdadeiro amigo.
No
dia seguinte, a caminho da escola, ele sentou-se no banco do costume e, sem que
ninguém percebesse, levantou o fundo falso do banco e, num misto de confusão e
entusiasmo, encontrou um conjunto enorme de todo o tipo de livros, organizados
em fileiras, por ordem de tamanhos. Ele sentiu algo inigualável, como se uma
pequena explosão de centelhas explodisse no seu peito. Permaneceu sentado,
confuso. Olhou para o motorista do autocarro, num impulso inocente e viu-o
piscar-lhe o olho. Tinha a certeza de que o tinha visto, mas não o podia jurar.
Ainda se sentia confuso. Tudo lhe parecia irreal.
Beatriz
06/06
O Último
Povo Livre
Entre as estepes da Mongólia, encontra-se o último povo
livre da Terra, descendentes do grande imperador mongol, Gengis Khan.
O espírito desta gente foi forjado durante séculos e nada
no mundo será capaz de quebrar o seu laço com a natureza.
Há muito tempo atrás, os cavalos, que os mongóis tanto
adoram, estavam amaldiçoados por espíritos malignos que os atormentavam e os
tornavam indomáveis. Os seus domadores tentaram de tudo: armadilhas, rituais e até
sacrifícios, mas nada resultou.
Já sem esperança, um dia, um xamã profetizou que iria
nascer uma criança cujo destino seria talhado para grandes coisas, uma criança
que iria liderar o povo mongol com tamanha força, que seria capaz de domar
cavalos.
Passaram-se anos
sem que a profecia se concretizasse, eram tempos difíceis, em que as várias
tribos mongóis se defrontavam entre si.
Nas estepes, existiam dois grandes clãs rivais os To Bay e os Ya Long cujos líderes eram Grito de Prata e Olhos de Águia, respetivamente.
Certo dia, quando Olhos de Águia liderava um ataque contra o clã To Bay, que
ficava junto a um vale, foi ferido com gravidade e acabou por morrer em batalha.
Com a morte do líder, os Ya Long tiveram que voltar para as montanhas. Quando chegaram,
por muito que os anciãos não quisessem, tiveram que proclamar Nevada, o único
filho de Olhos de Águia, chefe do clã. Todos achavam que Nevada não tinha nada a
ver com o pai, diziam que era fraco, piedoso e novo de mais.
Um dia, quando Nevada passeava pela floresta, encontrou
um cavalo selvagem desorientado, preso numa armadilha. Inicialmente, ele estava
com medo do cavalo, mas, apesar de saber que eram criaturas amaldiçoadas, viu
nos olhos do animal um fundo de bondade e, sem pensar mais, libertou-o e este,
num piscar de olhos, fugiu para a floresta sem que Nevada pudesse ver para onde
ele ia. Quando voltou para a aldeia e contou a todos o que tinha acontecido, ninguém
acreditou, pois como é que podia uma fera selvagem, que os atormentava há séculos,
ter sido ajudada por alguém tão fraco e inexperiente. Triste por ninguém ter
acreditado, foi-se deitar. No dia seguinte, ouviu, fora da sua tenda, um grande
alvoroço, pensou, imediatamente, que estavam a ser atacados pelos To Bay, mas
eram centenas de cavalos liderados por aquele que tinha sido ajudado pelo jovem.
Parece que o gesto de Nevada foi capaz de quebrar a
maldição, estando agora os cavalos dispostos a ser domados. Naquele momento,
todos, na aldeia, começaram a gritar o nome de Nevada. Após centenas de anos a
ser atormentados por aquelas criaturas, passaram a ter total controlo sobre
elas. Os anciãos reuniram-se de imediato com Nevada e afirmaram que aquela era
a altura perfeita para atacar os To Bay, pois agora estavam em vantagem. Contudo,
Nevada recusou tal ideia porque achava que tal ato só iria trazer mais dor e
sofrimento. Então, ele decidiu que se iria reunir com Grito de Prata e lhe iria
oferecer parte dos cavalos que estavam ao seu comando, em troca de um pacto de
paz entre os dois clãs e a partilha das terras férteis do vale, que os Ya Long
sempre tinham reivindicado como suas.
Assim foi, Nevada encontrou-se com Grito de Prata que,
após algum tempo, aceitou as condições do acordo, pois sabia que nada era mais
precioso, naquelas estepes, do que a possibilidade de cavalgar no dorso de um
poderoso cavalo.
Desde então, homens e cavalos caminham juntos, lado a
lado, pelas estepes da Mongólia.
João Dias
06/06
O Lago Misterioso
-Mãe, achas que o verdadeiro
amor existe?
-Porque dizes isso, minha
filha? Algum namorado teu que te maltratou?
-Não é isso É que… Com o
passar do tempo e com as experiências da vida, cada vez menos acredito nessa
ficção. Penso que sejam histórias inventadas pelos poetas.
-Bem, minha querida, vou
contar-te uma história da minha vila, de quando era pequenina.
Era uma vez, uma doce
rapariga, de longos e sedosos cabelos ruivos que vivia numa remota mas
simpática vila, no entanto, essa pobre rapariga era rigorosamente controlada e
maltratada pelos pais. Certa noite, à chuva, os pais da menina obrigaram-na a
ir sozinha em busca de cogumelos e especiarias na floresta. No entanto, essa
menina acabou por se perder e entrou no “Bosque Perdido”.
-Espera Mãe, como assim o
“Bosque Perdido”?
-Era um bosque muito escuro
e era conhecido pelo desaparecimento de muitas pessoas.
-Ah! Esclarecida…
Após
entrar, a jovem deparou-se com um caminho de pedras totalmente seco.
Estranhamente, a chuva não conseguia atingir as pedras que constituíam o
caminho, pareciam feitas de um mármore branco reluzente. Após uns momentos de
admiração, a menina decidiu remover os seus sapatos encharcados de água e seguir
o caminho que pensava ser mágico. Depois de uma longa caminhada, a moça
deparou-se com um lago que parecia não ter fim, nem era possível avistar terra
no horizonte, o que a levou a estranhar dado que desconhecera a existência de
algum lago nas proximidades da vila. Ela continuou a caminhar até que avistou
ao longe uma pessoa. Desamparada, a rapariga matutou sobre a decisão de
caminhar em direção a ela mas de repente encheu-se de coragem e seguiu em sua
direção. Era um jovem rapaz que parecia ter a mesma idade que a menina, ele
tinha uns longos cabelos da cor da neve pura e tinha os olhos azuis mais claros
que avistara em toda a sua vida. O jovem olhou para ela com uma expressão
serena e convidou-a para se sentar ao seu lado. Depois de uma longa conversa, a
moça acabou por se interessar pelo jovem, sentia algo que nunca sentira na sua
vida, não queria acabar a conversa, queria permanecer ao seu lado, no entanto,
já estava a ficar tarde e ela precisava de voltar para casa, então combinaram
encontrar-se no dia do repouso de cada semana, e assim o fizeram. Um ano
depois, no mesmo dia em que esses dois jovens se encontraram pela primeira vez, a rapariga teve uma discussão
com os pais e fugiu para se encontrar com o moço, mas não se apercebeu de que
os pais a perseguiam. A menina apercebeu-se, finalmente, de que estava a ser
seguida quando se encontrava no caminho de pedra. Sabendo da situação, começou
espontaneamente a correr para o local onde o casal se encontrara todas as
semanas. Os pais, ao repararem que a moça começara a correr, tentaram
acompanhar o passo para a alcançar. No entanto, quando chegaram ao local de
encontro dos dois jovens, não avistaram ninguém. A rapariga tinha desaparecido…
-É essa a história que me
querias contar? Então e o rapaz?
-O rapaz desapareceu com
ela, minha filha.
-Mas mãe, isso não passa de
um conto de fadas.
-Meu amor, isto é tudo
verídico, confia em mim.
-Mãe como é que sabes?! Não
passa de uma história contada na tua vila.
-Eu sei porque… Eu era essa
menina…
Bruno Cunha
06/06
Uma moradia numa rua
estreita, um dia de chuva cinzento e um assassinato. Um dia normal, portanto.
Álvaro cambaleava o corpo pelo quintal da
moradia e ia recolhendo informações à medida que um ou dois vizinhos penduravam
a cabeça nas grades de ferro da casa dispostos a dizer o que sabiam. Além do
cantar melancólico dos pássaros e do som áspero da sua camisa a roçar o casaco
de camurça, Álvaro não ouvia um único som. Apesar da curiosidade, as
vizinhanças pareciam respeitar a sordidez do caso: um corpo nu de uma mulher
com aproximadamente a sua idade completamente esquartejado em cima da bancada
da cozinha exigia um certo respeito. Era dos crimes mais hediondos que passara
pelas mãos de Álvaro.
- E
o que mais viu quando entrou em casa, dona Olga? – a empregada de limpezas, e
quem chamara a polícia momentos antes, mostrava-se visivelmente constrangida e
assustada. Fora a primeira a encontrar o corpo morto da patroa.
- O
corpo da doutora estava na bancada e havia sangue por todo o lado. Os armários
da cozinha, que eu ainda ontem tinha envernizado, estavam salpicados com gotas
vermelhas muito escuras. E havia um papel no chão. Estava escrito com uma letra
muito pequena e muito feia e dizia algo como “Só a sua ternura é tão natural” –
a mulher fez uma pausa. Ajeitou o lenço bordado na cabeça e limpou o suor que
lhe escorria pela testa cavada e prosseguiu. – Nojento, nojento! O corpo da
doutora, o sangue, os armários, o bilhete…
- E
a bebé? Não a viu? – perguntou Álvaro, de olhos pousados na mulher.
- A
menina estava na sala, a brincar com a roca que a mãe lhe deu ontem. Tadinha!
Tão nova e já sem mãe. Quem fez isto não se atreveu a tocar na bebé, graças a
Deus! Uma menina tão pequenina, tão doce, tão inofensiva…
- E
o seu patrão? Não estava em casa quando tudo isto aconteceu?
-
Não, o senhor doutor está há mais de uma semana fora numa viagem de trabalho.
Depois de agradecer o depoimento e de passar toda a manhã no local do
crime, Álvaro saiu para almoçar. Ao sair da moradia reparou com atenção num
bloco de azulejo afixado no muro da entrada onde estava gravada a indicação Cuidado com o Marido. A frase era
estranha e dava a entender que algo de errado se passava com aquele casal.
Álvaro tinha de falar com ele assim que chegasse de viagem. De qualquer das
maneiras, de certeza que já estaria a caminho de Portugal.
Eram
nove da noite quando finalmente saiu da sede da polícia judiciária e foi para
casa. Tomou um banho quente, fez a barba e aproveitou para espalhar loção
corporal pelos braços secos pelo frio. Afinal, os homens também tinham direito
ao conforto. Deitou-se no sofá e pensou um pouco sobre o que se passara naquele
dia. Pensou na inquietação das pessoas com as caras coladas à grade, no
ambiente sangrento e vil por toda a casa, na serenidade no olhar da bebé que
brincava com a roca. Quase como se não estivesse preocupada, como se não
tivesse medo, como se não estranhasse… Era uma bebé, sim, mas era normal ter-se
mantido tão apática? Segundo os relatos recolhidos a bebé esteve em casa com a
mãe o dia todo… E aquela placa de azulejo no muro da casa… Alguma coisa não
batia certo mas parecia evidente de mais.
O
telefone tocou de repente. Álvaro esticou o braço para o agarrar e atendeu a
chamada. Era o seu parceiro. Trazia notícias sobre o tal doutor. Parecia que nunca chegara a fazer nenhuma viagem… Parecia
que nunca chegara a sair do país… Parecia que se tinham sido encontradas
impressões digitais na roca da bebé…Parecia tudo tão evidente…
Beatriz
04-04
Os raios de sol
espreitaram pelas minhas persianas, indicando-me que o dia já tinha começado.
Abri calmamente os
olhos para que me pudesse habituar à luz. Sentei-me então na cama e olhei em
redor, apercebendo-me da ausência de James. O seu lugar estava ainda quente por
isso percebi que não tinha saído há muito tempo, talvez apenas alguns minutos
antes de eu acordar.
Levantei-me, então, e
ao sair do quarto, ouvi um barulho na cozinha. Curiosa, caminhei nessa mesma
direção, encontrando o meu marido a preparar o pequeno-almoço.
Marido… que palavra
tão estranha e maravilhosa ao mesmo tempo! De acordo com o dicionário, marido
significa cônjuge, esposo, alguém que nos ama e nos apoia de modo
incondicional. E é isso mesmo que ele tem sido para mim. Ele faz-me feliz todos
os dias. Somos casados há 2 anos, mas temos 6 de relação.
Temos uma história
engraçada… Conhecemo-nos no secundário, e rápido nos tornámos melhores amigos. Lembro-me
perfeitamente de que, no nosso primeiro encontro, James me levou à cabine onde
ele e os amigos passavam música e onde nasceu a rádio que ouvimos todos os
dias. Ironicamente, é a única estação de rádio sincronizada no nosso automóvel,
pois funciona como uma espécie de memória viva que nos permite reviver toda a
emoção da melhor música de hoje e dos últimos 10 anos.
- Bom dia! – James
exclamou transportando-me de novo para a realidade.
- Bom dia!
- Bom dia!
- Com fome?
- Como se não me
conhecesses – brinquei.
- Por essa razão é que
preparei este mega pequeno almoço! Vamos precisar de energia para a viagem!
Olhei a mesa e o meu
estômago roncou, o que nos fez rir. A comida tinha um aspeto delicioso!
- Obrigada! – disse,
dando-lhe um abraço.
- Sempre às ordens! –
sorriu – Estás preparada?
- Estou mais do que
preparada! – disse, enquanto nos sentámos à mesa e iniciámos a refeição.
- Nem acredito que já
estamos no final do ano…
- Nem eu… este ano passou
num abrir e fechar de olhos!
James assentiu em
concordância. – Já tens tudo pronto?
- Sim, e tu?
- Tudo preparado!
Sendo assim, vou tomar duche para depois te poderes arranjar com tempo!
- Ok – sorri.
Antes de deixar a
cozinha, James plantou um beijo calmo na minha testa, deixando um sorriso a
dançar nos meus lábios. Saiu-me mesmo a sorte grande!
Levantei a mesa e lavei tudo, para que ficasse tudo arrumado.
Caminhei de volta para o quarto. James saiu da casa de banho, já pronto e foi
revistar as malas uma última vez, enquanto eu me arranjava.
Faltava cerca de uma hora para o voo, quando saímos de casa
em direção ao aeroporto.
- Hello, it’s me. – Cantámos em conjunto, soltando uma gargalhada.
Cantar não é o nosso forte, mas acho que o entusiasmo da viagem era a causa desta alegria matinal.
Cantar não é o nosso forte, mas acho que o entusiasmo da viagem era a causa desta alegria matinal.
*
Depois de fazermos o check in e de estarmos sentados nos nossos lugares, ligámos os fones ao telemóvel e ouvimos música. Entrelaçámos as nossas mãos e disfrutámos a viagem.
O avião aterrou poucas
horas depois. O meu relógio rondava as 16 horas, quando pisámos em terra firme.
Apanhámos as nossas malas e fomos diretos para o hotel.
Instalámo-nos num
quarto que ficava a meio do hotel. O quarto era acolhedor e estava decorado com
mobílias modernas o que lhe dava um toque requintado e leve ao mesmo tempo.
Colocámos as malas a
um canto e demos uma volta pelo quarto. De seguida, fomos até à varanda.
Estava completamente
maravilhada com a paisagem que os meus olhos testemunhavam. Montes de um verde
escuro, mas que despertava uma certa curiosidade em mim. O oceano de um azul
escuro mas cristalino. A brisa calma que fazia os meus cabelos dançarem ao sabor
do vento.
E no meio de todo aquele ambiente, nenhum de nós se atreveu a
proferir uma única palavra. Ambos admirávamos a ilha espantosa que tínhamos
escolhido para passar a passagem de ano – a ilha dos Açores.
Os braços de James
abraçaram o meu corpo, deixando-me ainda mais descontraída.
- Gostas? – perguntou com uma voz calma e doce.
- Gostas? – perguntou com uma voz calma e doce.
- Muito – respondi de
igual forma. – E tu?
- Também – sorriu –
Estás ansiosa?
- Nota-se muito? –
perguntei e James soltou uma gargalhada abafada.
- Um pouco.
- Um pouco.
- Ups! – ri-me.
Mas é motivo para estares, afinal é o último dia do ano amanhã e correm boatos de que a festa neste hotel costuma ser das grandes!
- Depois de um ano trabalhoso e tão intenso
como este é mesmo disso que estamos a precisar – suspirei e virei-me,
encarando-o.
- Concordo plenamente.
– sorriu, pondo uma mexa de cabelo meu atrás da minha orelha. – Foi deveras
intenso. Especialmente na empresa.
- Sim. Mas o que importa é que a empresa está muito bem colocada a nível nacional e isso é que importa!
- Sim. Mas o que importa é que a empresa está muito bem colocada a nível nacional e isso é que importa!
- O teu pai ia ficar
muito orgulhoso – James sorriu, carinhoso.
Retribui-lhe o sorriso apesar da pequena pontada de tristeza.
Retribui-lhe o sorriso apesar da pequena pontada de tristeza.
Perdi o meu pai há
cerca de 7 meses. Ninguém estava preparado para a sua partida, ou a maneira
como esta aconteceu. Uma doença, sem cura, ou uma dolorosa como muita gente a
designa e agora consigo perceber o porquê.
Os primeiros tempos
após a notícia foram devastadores. Sentia-me triste, incompleta mas ao mesmo
tempo revoltada e desiludida comigo própria por não ter percebido mais cedo que
algo não estava bem. Que algo o impedia de dormir à noite. Ele felicitou-me no
meu melhor e apoiou-me no meu pior e eu nada pude fazer para lhe retribuir.
Um mês se tinha
passado quando, ao esvaziar as gavetas do escritório do meu pai, a minha mãe
encontrou uma carta. Nela, estavam todos os desabafos do meu pai em relação à
doença e para quem deveria ficar a empresa depois da sua morte.
O seu desejo era que
eu continuasse o que ele não pôde acabar. E era mesmo isso que eu estava a
fazer. James era o meu braço direito na empresa e ambos damos continuidade ao
grande império dos Bettencourt.
- Eu gosto de pensar
que sim – sorri.
- Eu sei que sim –
sorriu-me de volta.
Abracei-o e voltámos
para dentro.
*
O sol já tinha nascido
quando o telefone do hotel tocou, dando-me a indicação que estava perto da hora
do pequeno-almoço. Abri os olhos e levantei-me ainda sonolenta e fui até à
estante onde o telefone se encontrava. No preciso momento em que me preparava
para atender, desligaram. Revirei os olhos e suspirei frustrada. Decidi
preparar-me antes de acordar James.
Levantei então os
estores, deixando que os poucos raios de sol que ainda não se tinham escondido
atrás de uma nuvem embater na sua face. Ele franziu a testa e segundos depois
ouvi-o dar uma risada e praticamente enterrar a cara na almofada.
- Diana, isso não era
necessário – resmungou.
- Hora de levantar –
ri-me.
Depois de largos
minutos naquela posição, James lá se levantou. Deixei-o preparar-se ao seu
ritmo e aproveitei para fazer um telefonema para a minha mãe, apenas para me
certificar de que estava tudo bem.
Eram por volta das 8
da manhã, quando fomos tomar o pequeno-almoço. Depois disso, aproveitámos a
manhã para ir fazer um pouco de turismo pela ilha.
Almoçámos num restaurante que ficava perto de
uma das colinas. A comida era bastante saborosa. Nas ruas da cidade havia
pessoas por toda a parte. Os cafés ainda piscavam com as luzes de natal e havia
um certo aroma a doces a pairar no ar. Mestres da pirotecnia montavam os
circuitos para o fogo-de-artifício. No hotel não era diferente – a parte do
salão onde se ia dar a grande festa encontrava-se fechada, mas era possível
ouvir a grande azáfama por trás das duas portas brancas.
James e eu tínhamos um
programa de spa marcados para a tarde, para ocuparmos o tempo que faltava para
a festa.
No fim da sessão,
voltámos para o nosso quarto, onde nos começámos a preparar. Coloquei a minha
mala sobre a cama e abri-a, retirando de lá o meu vestido, previamente
selecionado para hoje, e os sapatos. Vesti-me e preparei o essencial à vida de
uma mulher a partir do momento em que a palavra “festa” faz parte do cenário –
cabelo e maquilhagem.
Demorámos cerca de uma
hora e meia até estarmos totalmente prontos, mesmo a tempo do início do jantar.
Descemos para o salão, agora de portas abertas e cheio de gente. Caminhámos
pelo meio das mesas, procurando pelo nosso apelido.
A comida não demorou a
ser servida e até agora a noite estava a ser excelente. O tempo estava ótimo,
tanto na rua como dentro do salão. Falámos, rimos e comemos, que melhor há para
se fazer?
Passada a hora de
jantar, a pista de dança encheu-se de gente – famílias divertidas, idosos que
não dispensam um bom passinho de dança, em geral ninguém resistia ao ritmo.
James olhou a pista e
de seguida lançou o seu olhar na minha direção e eu percebi logo o que ele
queria.
- Nem penses. – soltei
uma gargalhada.
- Anda lá. –
levantou-se e pegou nas minhas mãos, puxando-me para cima. Lá cedi e
acompanhei-o.
- Só uma! – adverti.
- Sim, senhora. –
sorriu.
Uma música calma
começou a tocar. Descansei o meu rosto sobre o seu ombro e ficámos mais
próximos. Não precisámos de dizer nada um ao outro, este silêncio dizia tudo.
No fim da música
regressámos aos nossos lugares. De vez em quando lá dançávamos, mas o que
queríamos mesmo era que a meia-noite chegasse.
*
Dez minutos antes da meia-noite todos caminhámos para o
terraço em frente ao salão, cada um com o seu copo de champanhe, aguardámos
ansiosos.
Começámos a ouvir a contagem.
- 5,4,3,2,1, Feliz Ano
Novo!
O céu encheu-se de cor. Abraços, beijos, choros e risos foram partilhados. Assistimos a cerca de 7 minutos de espetáculo e festejamos pela noite dentro. O novo ano tinha chegado e com ele novas aventuras e objetivos.
Márcia
04-04
Estou
cego,
quem
me cegou?
Não
sei se é culpa minha
se
da velhice que chegou.
Contudo
cuido que descobri
-
e tanto me magoa essa verdade –
que
cego e surdo sempre vivi
e
pobre d’alma e rico em vaidade.
Nunca
via nem olhava senão para mim
e
alimentava-me esta minha capacidade
de
cegar conforme a ocasionalidade,
mas
recentemente decifrei
que
este alimento que certo em mim julguei
faz
de mim um velho acrítico
que
morrerá, mais cedo ou mais tarde, raquítico
Estou
cego,
quem
me cegou?
Não
sei se é da velhice,
se
da ignorância que s’instalou
Beatriz
04-04
Foi quando a lua parecia arder por baixo de uma campânula de vidro que as últimas pessoas recolheram à sua casa e eu fiquei sozinho. Tenho, reparo agora, a lâmpada estragada e percebo que essa é então a verdadeira razão pela qual aquela enxaqueca me assombrou. Tenho frio e doem-me as costas, constato. O velho gato gordo que costuma fazer-me companhia morreu recentemente e não tenho ninguém com quem falar. Sinto-me perdido e, ironicamente, sem luz. Tenho uma pastilha elástica colada ao pé e desespero por não a conseguir tirar. Faz-me comichão.
De
repente, estaco. Oiço um barulho agudo ao fundo da rua. Tenho medo. Sinto-me
indefeso e está escuro. Mesmo que quisesse, não me podia mexer. Sou um
candeeiro de rua, lembras-te? O som aproxima-se, torna-se mais forte e junto
com ele vêm vozes atabalhoadas e com cheiro a bagaço. Sinto o coração
palpitar-me no peito. Chega então ao largo “o som”. Chama-se Tó, é casado, tem
duas filhas e está bêbado pela quinta vez esta semana. Arrasta-se como se
tivesse correntes de metal presas aos pés e cambaleia como uma bailarina na
terceira idade. Traz ao colo um par de garrafas que tilintam e calculo que esse
tilintar seja, mesmo assim, o som mais bonito que ouviu nos últimos tempos. Ele
senta-se num banco à minha frente e chora. Nesse instante, sinto-o meu amigo.
Tal como eu, está sozinho, tem medo e frio- Está preso e imóvel e sem luz. Sem
sabermos, somos irmãos. Estamos acabados e entregues ao vento. Tomara que o
vento não nos leve.
Beatriz
17/01
Manaus. “Não é propriamente o meu destino de sonho”, disse eu à hospedeira de bordo quando aterrámos. “Olhe que ainda se vai surpreender”, disse-me ela, de seguida. Devia ter uns cinquenta anos, era alta e esguia e sem perceber muito bem porquê lembrava-me o Natal. “Duvido” – retorqui.
À porta do
Aeroporto Internacional Eduardo Gomes já me esperava Anderson Teodoro, de
bigode farto e um cartaz na mão com meu nome. Estava encostado a um jipe
verde-escuro de capota aberta e assobiava-me ao longe. Entrei no carro.
Chegamos à
Floresta Amazónica em pouco tempo, Teodoro pediu-me que me instalasse numa
cabine enquanto ele ia preparar o barco.
Entrei na cabana
e olhei em volta à procura do meu pai. Quando o vi, estremeci. Estava velho, o
cabelo cinza escuro molhado por cima da camisola desbotada. Sorria-me exageradamente e envolveu-me em abraços desmedidos. Agradeceu-me por ter vindo, prometeu-me que ia gostar da viagem. Suspirei.
Entrámos no
barco que Teodoro entretanto preparara. Sentei-me a um canto e pus um chapéu de
montanhismo na cabeça. O ar estava – e lembrei-me como se fosse hoje – emundado
de centelhas que pareciam transformar-se em espuma quando lhes tocava. Estava
quente e estupidamente húmido. Cheirava sobretudo a orvalho e algodão-doce.
Quando Teodoro começou a remar, senti que todos os meus cinco sentidos se conjugavam
num só, uma mixórdia de emoções que nunca, até hoje, consegui explicar.
Descrevi essa sensação, anos mais tarde, como uma espécie de magia que nos
assola de uma forma surpreendentemente positiva.
Cerca de vinte
minutos depois, chegámos a terra. Levantei-me, ainda ligeiramente abalada, e
caminhei.
O meu pai
pediu-me que deixasse com Teodoro todos os meus pertences e eu acedi.
Caminhámos por entre sequências de árvores que, sem que eu consiga explicar,
pareciam cantar-me ao ouvido. Vi, por cima do ombro, Teodoro acenar-me. Andámos
quase um quilómetro e as pernas começaram-me a doer realmente, quando passámos
de um caminho em linha reta para uma subida colossal. O meu pai segurou-me o
braço, quando nos aproximámos de um par formoso de rochas gigantes. Ouvi o som
estridente e assustei-me.
Ainda hoje não
consigo explicar bem o que aquilo para mim significou, mas sei que foi das
melhores sensações que experienciei. Foi a melhor viagem da minha vida. Manaus.
15-12
Tubérculos são
cofres naturais
de energias
puras e vitais.
Energias, limpas
e não mortais
e que na mão de
um chefe se tornam reais.
“Pomme de terre”
diz a alma francesa,
são produtos
indispensáveis na cozinha portuguesa.
Em sopas e
cozidos novos e velhinhos,
não a dispensam
à mesa com certeza.
Evidente
utilização, mas na forma
pouca perfeição.
A sua norma
não encanta mas
transforma a lembrança
de quem um dia
já foi criança.
João
15-12
Corre,
mas não corras
demais que coxeais
Ri,
mas não rias o
bastante que anseias
Chora,
mas não chores
de cicatrizes passadas
nem lamentes as
aventuras desventuradas
que te consomem
desagradavelmente
Morre de amores,
mas não morras
demasiado
que o amor é
danado
e não tardará em
voltar
Teme,
mas não temas em
arriscar
que o que parece
longo desaparecerá
como o dia para
a noite
a esquerda para
a direita,
a vida para a
cova estreita
Vive,
mas não vivas em
prol do que é incerto
Berra,
mas não berres
audivelmente
para o chão não
latejar
e caíres
desamparado
e sê o mais que
puderes
sem medo do que
é certo ou errado
Beatriz
24-11
Tu resolves fugir de mim
deixando para trás tudo o que passámos,
partes as chaves que outrora nos uniram
com a intenção de nos dispersarmos.
A história do nosso passado
ocorreu a partir de um determinado erro
que nunca pôde ser ultrapassado
E que resultou no meu aferro a ti.
A ciência do amor
limita-se a uma antinomia de sentimentos
estruturado de mentiras e clamor
e resultando em ferimentos.
24-11
Uma real confusão
O meu corpo embateu com o chão, fazendo uma nuvem de areia erguer-se pelo ar. Levantei-me e quase voltei a cair para o lado quando me apercebi da fatiota que tinha vestida. O que é que eu estava a pensar quando saltei por aquela janela? Isto é o que acontece quando se passa demasiado tempo a estudar História…
Sacudi o meu vestido cheio de folhos e de corpete apertado, e dei um leve suspiro antes de olhar em redor. Estava no meio de uma feira; havia tendas de comerciantes por todo o lado, carroças carregadas de frutas e vegetais e dançarinas que abanavam os seus corpos ao som da música medieval.
Caminhei por entre a feira repleta de gente. As roupas e costumes comprovavam os meus pensamentos. Ao longe um castelo enorme feito de pedra. Misturei-me entre as pessoas e saí junto ao caminho para o castelo. Apesar de não entender o que passava, estava a adorar tudo em redor... Talvez me mude!
Atravessei uma parte e parei junto à porta do palácio. Bati na mesma, esperando que alguém tivesse pena desta pobre rapariga e a viesse socorrer, mas não!
- Quem vem lá? – o guarda pergunta do outro lado da porta baixando a pequena portinhola e espreitando por lá.
- Hm.. Olívia. – murmurei.
- Olívia quem? – voltou a questionar.
- Olívia Benson.
- Pois… Olívia Benson não está na lista… por isso Donzela, pode ir de volta para d’onde veio.
- O problema é esse, é que eu… - fui interrompida pela portinhola a ser fechada.
Suspirei frustrada e caminhei para o jardim do lado esquerdo do castelo, sentei-me junto a um carvalho virado para o rio e atirei algumas pedras para dentro do mesmo. Fechei os olhos e pensei nos últimos minutos. Como é que eu vim aqui parar? Eu estava apenas a estudar para o exame final de História, fui à janela e puff! Aqui estou eu, a vaguear pela idade média sem poder fazer nada para voltar para casa.
No meio de tanto ruído causado pela
minha mente, ouvi passos aproximarem-se de mim. Levantei-me e olhei na direção
do barulho.
- Está ai alguém? – perguntei receosa.
- Desculpe, não queria assustá-la. – uma voz masculina soa. Era grossa e rouca mas deu-me uma sensação de relaxamento instantânea.
- Se não me queria assustar, porque continua escondido? – questionei.
- Tem toda a razão… - falou baixo, saindo de trás de uma árvore.
Observei a sua figura. Era alto, de pele branca com um leve tom bronzeado. Tinha vestidas as roupas habituais, de alguém da realeza. Na sua face havia uma barba pequena que lhe ficava lindamente. As suas feições bem esculpidas e os seus olhos castanho escuros levaram-me a concluir que era provavelmente o príncipe do reino.
- Qual é a sua graça? – perguntou encostando-se à árvore que estava de frente para mim.
- Olívia. Olívia Benson. – disse.
- Olívia… é adequado – olhou-me de alto a baixo.
- Desculpe?! – olhei-o indignada.
O rapaz deu uma gargalhada. – Estou apenas a meter-me consigo! Sou o Edward.
- Não será príncipe Edward? – questionei erguendo uma sobrancelha.
- Foi assim tão óbvio?
- Um pouco – ri-me.
- E eu a pensar que ia conseguir dar-me com alguém sem ser tratado como membro da realeza.
- O que quer dizer com isso? Lá por ser da realeza não quer dizer que tenha de o tratar de forma diferente das outras pessoas. E para além disso… ser da realeza é muito fixe!
- Fixe? – questionou.
- Desculpe, esqueci-me de que não sabe o que é… - cocei a nuca. – Quer dizer que é uma coisa boa.
- Oh… obrigado. – sorriu. – Gostava que todos pensassem como a donzela. É que é um pouco difícil dar-me com alguém aqui… parece que das duas uma… ou têm medo e não se dão ou querem aproveitar-se da minha riqueza e poder.
- Parece que alguém está a precisar de um chocolate. – sorri, fazendo a atenção de Edward cair em mim. – Não é o único com problemas…
- Então?
- Pois, eu não sou daqui… E até é cómica a maneira como aqui cheguei.
- Pode partilhar?
- Foi por uma janela.
- Por uma janela?
- Sim – ri-me.
- Queira explicar-se.
- É assim… Eu venho do século XXI, que, como sabe, é muito mais para a frente. Estava a estudar para o meu exame final de História. Fui à janela e puff! Aqui estou eu.
Edward olhou-me por vários segundos. – Sente-se bem Olívia?
- Sinto-me ótima!
- Tem a certeza?
- Tenho - assenti – Eu agradecia uma ajudinha.
- E como é que eu poderia ajudar?
-Primeiro, corte o vós. Na minha era isso já não se usa, e, segundo, eu preciso de voltar para casa.
- Não entendo onde é que eu me enquadro ai!
- Talvez conheça alguém que me possa ajudar!
Edward olhou-me pensativo. – Talvez.
- Então isso é um sim?
- Nunca ajudei um estranho antes. E já ajudei muita gente!
- Hei, eu não sou um estranho. Sabe o meu nome e por que razão aqui estou.
- Pronto, já percebi... Eu ajudo!
- Obrigada! – sorri.
- Vamos lá então! – levantou-se.
- Tão impaciente… - murmurei e levantei-me.
Edward caminhou pelo meio da floresta e eu segui-o. Entrámos no castelo pela porta das traseiras, onde ficava a cozinha.
Passámos pelo meio de muita gente, todos eles se curvavam à passagem de Edward pelo seu meio. Acho que me podia habituar a este estilo de vida. Afinal, a época medieval é a minha favorita.
- Está ai alguém? – perguntei receosa.
- Desculpe, não queria assustá-la. – uma voz masculina soa. Era grossa e rouca mas deu-me uma sensação de relaxamento instantânea.
- Se não me queria assustar, porque continua escondido? – questionei.
- Tem toda a razão… - falou baixo, saindo de trás de uma árvore.
Observei a sua figura. Era alto, de pele branca com um leve tom bronzeado. Tinha vestidas as roupas habituais, de alguém da realeza. Na sua face havia uma barba pequena que lhe ficava lindamente. As suas feições bem esculpidas e os seus olhos castanho escuros levaram-me a concluir que era provavelmente o príncipe do reino.
- Qual é a sua graça? – perguntou encostando-se à árvore que estava de frente para mim.
- Olívia. Olívia Benson. – disse.
- Olívia… é adequado – olhou-me de alto a baixo.
- Desculpe?! – olhei-o indignada.
O rapaz deu uma gargalhada. – Estou apenas a meter-me consigo! Sou o Edward.
- Não será príncipe Edward? – questionei erguendo uma sobrancelha.
- Foi assim tão óbvio?
- Um pouco – ri-me.
- E eu a pensar que ia conseguir dar-me com alguém sem ser tratado como membro da realeza.
- O que quer dizer com isso? Lá por ser da realeza não quer dizer que tenha de o tratar de forma diferente das outras pessoas. E para além disso… ser da realeza é muito fixe!
- Fixe? – questionou.
- Desculpe, esqueci-me de que não sabe o que é… - cocei a nuca. – Quer dizer que é uma coisa boa.
- Oh… obrigado. – sorriu. – Gostava que todos pensassem como a donzela. É que é um pouco difícil dar-me com alguém aqui… parece que das duas uma… ou têm medo e não se dão ou querem aproveitar-se da minha riqueza e poder.
- Parece que alguém está a precisar de um chocolate. – sorri, fazendo a atenção de Edward cair em mim. – Não é o único com problemas…
- Então?
- Pois, eu não sou daqui… E até é cómica a maneira como aqui cheguei.
- Pode partilhar?
- Foi por uma janela.
- Por uma janela?
- Sim – ri-me.
- Queira explicar-se.
- É assim… Eu venho do século XXI, que, como sabe, é muito mais para a frente. Estava a estudar para o meu exame final de História. Fui à janela e puff! Aqui estou eu.
Edward olhou-me por vários segundos. – Sente-se bem Olívia?
- Sinto-me ótima!
- Tem a certeza?
- Tenho - assenti – Eu agradecia uma ajudinha.
- E como é que eu poderia ajudar?
-Primeiro, corte o vós. Na minha era isso já não se usa, e, segundo, eu preciso de voltar para casa.
- Não entendo onde é que eu me enquadro ai!
- Talvez conheça alguém que me possa ajudar!
Edward olhou-me pensativo. – Talvez.
- Então isso é um sim?
- Nunca ajudei um estranho antes. E já ajudei muita gente!
- Hei, eu não sou um estranho. Sabe o meu nome e por que razão aqui estou.
- Pronto, já percebi... Eu ajudo!
- Obrigada! – sorri.
- Vamos lá então! – levantou-se.
- Tão impaciente… - murmurei e levantei-me.
Edward caminhou pelo meio da floresta e eu segui-o. Entrámos no castelo pela porta das traseiras, onde ficava a cozinha.
Passámos pelo meio de muita gente, todos eles se curvavam à passagem de Edward pelo seu meio. Acho que me podia habituar a este estilo de vida. Afinal, a época medieval é a minha favorita.
- Vamos até ao aposento do meu pai. Ele
vai poder ajudar-nos.
-Do… R-R-Rei? – olhei-o.
- Ficas nervosa quando falo do meu pai e
ficaste normal comigo? – ergueu uma sobrancelha.
- Oh… é diferente – dei de ombros
-Porquê – perguntou.
-Oh esquece…vamos ou não?
- Vamos … vamos
- Subimos várias escadas até chegarmos a
um corredor. No fim, dois guardas parados à porta olham-nos e vigiarem todos os
nossos movimentos.
- Boa tarde – Edward- disse
- Vossa alteza – curvaram-se, dando-nos
passagem.
Entrámos no quarto. O rei estava sentado
na secretária assinar qualquer coisa. Quando Edward fechou a porta, a atenção
do rei caiu sobre nós.
-Ah, Edward por aqui? E quem é atua
amiga?
- Pai, esta é a Olívia. Ela precisa de
ajuda.
-Oh … e como posso ajudar?
-Bem… - contei-lhe a minha história. Ao
início não acreditou, mas depois de lhe dar algumas provas (como datas futuras)
dispôs-se a ajudar-me.
- Bem, podes ir ao feiticeiro do reino.
Ele saberá o que fazer.
- Muito obrigada, Vossa Alteza.
- Não agradeças – só tenho pena que não
fiques. Aqui o Edward podia casar contigo.
- Não obrigado. Dissemos nós ao mesmo
tempo.
- Ai o amor jovem…
Fizemos ambos uma careta e saímos dos
aposentos. Descemos a escadaria toda até ao fundo. Chegámos a uma porta de
forro e entrámos. Em várias prateleiras, vários frascos. No canto, um homem
encostado à parede que se aproximou analisou-nos.
-O príncipe? Por aqui?
-Precisamos da sua ajuda.
- E eu em que posso ajudar?
Expliquei tudo novamente se calhar devia
escrevê-lo e mostrar para poupar saliva.
-Ah, eu posso ajudar.
Do nada arrancou-me um cabelo.
-Au! – disse alto.
-Desculpa, foi sem intenção, mas
precisava dele – riu-se.
Rolei os olhos e olhei Edward.
Aproximamo-nos do caldeirão. Ele disse umas palavras loucas e fez magia. Bebi a
mistura.
- Agora é só saltares aquela janela. Se
foi uma janela que te trouxe, é uma janela que te leva.
- Respirei fundo aproximando-me.
- Bem, parece que acabou – sorri olhando
Edward – obrigada pela ajuda!
-Obrigada pela hora e meia de amizade –
sorriu – toma! Entregou-me o seu anel como recordação.
- Toma. – Deixei-lhe o meu colar – abracei-o
e saltei.
Abri os olhos, novamente de volta, vendo
o meu quarto e tudo como tinha deixado. Meti o anel na mão, fechei os livros e
apaguei a luz. Chega de estudo por hoje.
Márcia
24-11
IRONIA da VIDA
Foi no dia da
morte da minha mãe que percebi o quão irónica esta vida é. Inicialmente, fomos
a novidade da aldeia, as mais faladas, as aberrações. Eu era a pobre filha da
mulher com quem nenhum homem quis casar, era filha de mãe solteira, era filha
de uma mulher falada por toda a gente. Quando entrava na igreja, ao domingo, as
senhoras de família retiravam-se e levavam consigo os pequenos que, ensinados
desde sempre a respeitar a palavra cristã, menosprezavam uma infeliz rapariga e
sua mãe que nada haviam feito para merecer tal punição.
Quando um
aristocrata rico – Dom Filipe de Castanho – apareceu na aldeia com os seus
dezassete homens vestidos a preceito, eu percebi que estava destinada a mais do
que aquela vida mesquinha.
Dom Filipe
procurou por todas as casas uma pessoa que nunca chegara a conhecer, de quem
não conhecia um único traço do rosto. Dotado desde sempre por pensamentos
liberais, não vacilou nem por um instante, quando me apresentou à corte como
sua filha, uns dias depois, em Lisboa. Foi a primeira vez que viajei de
carruagem.
Três meses
depois, a mãe regressou à aldeia onde estaria destinada a terminar os seus
dias. Eu fiquei na corte, recebi educação e etiqueta e comecei a lavar-me com
mais frequência e a pôr pó-de-arroz nas maçãs do rosto. Aprendi a forma correta
de cumprimentar as pessoas e comecei a frequentar os clubes de chá das filhas
das burguesas. Uma tal Petra foi a que sempre me chamou mais a atenção. A forma
como se descalçava nas reuniões, como desapertava a cinta minuciosamente
apertada pelas aias e o jeito descomprometido como falava das coisas suscitava
em mim sentimentos de desaprovação que nunca pensei ter. Um dia, quando todas
as outras filhas de burgueses saíram para andar de cavalo, chamei Petra à parte
para lhe perguntar o que sempre tivera curiosidade de saber:
- Por que te
comportas de forma tão desadequada?
A resposta que
Petra me deu, ainda hoje ressoa pelo mais íntimo de mim.
- Porque, cara
bastarda, nesta vida só podes ser uma coisa. Eu sou o que quero ser!
Foi depois de
ouvir isto que comecei a repensar a minha existência. E foi então que percebi:
eu não queria ser aquilo!
Aproveitei um
descuido da ama e meti-me numa carroça que ia partir para o centro da cidade.
Quando, ao longe, avistei a aldeia onde cresci, saltei da carruagem e procurei
por todo o lado a minha casa. Avistei-a, por fim, ao longe, num sítio que
estranhamente já não recordava assim. Entrei pela porta entreaberta e chamei
pela mãe. Ia pedir-lhe desculpas, dizer-lhe que me tinha arrependido da minha
escolha, que preferia ser pobre a viver sem ela.
Silêncio.
Não vi a mãe em
lado nenhum. A janela da cozinha, mais à frente, emanava um brilho invulgar.
Aproximei-me, esperançosa de, ao espreitar por entre o vidro, encontrar a minha
mãe no quintal, a estender a roupa, a regar as plantas…
Mas não.
Quando olhei
pela janela, estaquei, gelada.
Do outro lado do
vidro, vislumbrei a minha mãe, deitada no chão com um buraco vermelho escuro na
testa. Olhei em volta e vi um cartuxo perdido na relva, completamente
abandonado. Pobre mãe, se foi morta pela espingarda ou pelos comentários
ruidosos que ouviu quando a deixei, não sei. Pobre mãe, partiu sem saber que eu
havia regressado. Pobre mãe, partiu a achar que a tinha abandonado.
Foi no dia da
morte da minha mãe que percebi o quão irónica esta vida é.
Beatriz
8-11