Cheirava-me a tabaco.

A humidade do ar misturava-se com aquele odor e criava uma fragrância quente e bolorenta. Cheirava-me a frustração.
Era um corpo magro, demasiado esquálido que consumia cigarros, uns atrás dos outros.
Uma mulher fina, descoordenada, os ossos roçavam-se-lhes na pele seca e gelada. O fumo que expelia pela boca era talvez o contacto mais quente que tivera em muitos anos. A opacidade do ser corpo e da sua matéria sentia-se ao longe e perturbava-me. Estava sentada numa mesa ao seu lado a observá-la. Sentia-a vazia. Transpirava calores frios e urgentes. Tudo nela era como um grito mudo que pedia  ajuda. Vê-la, doeu-me. Ela levantou-se. Arrastava os pés pelo chão e fumava um outro cigarro. O terceiro. As pernas não se tocavam e pareciam desmontar-se enquanto andava. Ela desapareceu no escuro de uma rua e nunca mais a voltei a ver. Desapareceu. Desapareceu a desaparecida. Doeu-me. Marcou-me. Continuei a beber o meu café.


Beatriz Ramos Cardoso 11º.E
                                       

Pergunto-me todos os dias o que nos rege, o que faz tudo isto andar para a frente, qual o verdadeiro cerne da vida. Aquela carta não me trouxe respostas mas mostrou-me a outra parte das perguntas.
Foi há relativamente pouco tempo. Corria na praia, como faço quase todas as amanhãs, – privilégios de quem mora à beira mar – e o ar estava estranhamente quente, cortava a cara, enquanto corria.
Lá estava ele, ao longe. Aquele ponto brilhante, cravado na areia, a balançar com a ondulação. Estava à minha espera, sei-o. Parei para ver melhor – podia ser um relógio, uma aliança – e vi aquele pedaço de vidro verde azeitona coberto de espuma e areia, a brilhar, a dançar com a força da água.
Agarrei a garrafa com cuidado, analisei-a com cautela. O vidro estava quente e riscado pelas conchas e pelas rochas. Tinha acabado de dar à costa para vi para vir ao meu encontro. A praia estava deserta, ela sabia por quem procurar.
Dentro da garrafa, por baixo de uma rolha de cortiça roída, uma mensagem incrivelmente seca, enrolada e presa com um frio de ráfia. Sentei-me na areia, a água e a espuma a acariciar-me os pés descalços.
Olhei em frente. Não vi ninguém, nenhum barco, nenhum surfista. Via só um manto azul e uma bola amarela a cortar a linha do horizonte. Era uma mensagem do oceano, da vastidão.
O fio partiu-se, mal lhe toquei e desenrolei a mensagem, com cuidado. O sol aquecia-me os olhos cansados, como que permitindo-me ver cada palavra com mais precisão. O marulhar embalou-me e comecei a ler, devagar.
«Não confio em Deus, nas energias nem em nada parecido, mas confio na água e na força da maré e sei que ela levará esta mensagem, ao seu verdadeiro destino. Não sabia a quem recorrer, por isso recorro a ti, leitor. Ouve-me quando mais ninguém o soube fazer. Estou no meu barco, a 320km da costa e recorri a esta folha enrugada para abrir o meu coração e dar-lhe algum espaço.
Faz hoje 1 ano que a levaram e não há um dia em que não pense no quão injusta esta vida – como eles lhe chamam – é. Tê-la visto escapar-se deste mundo naquele suspiro foi a pior coisa mais atroz que já senti. A força a desmoronar-se-lhe dos dedinhos pequenos, os olhos a apagarem a cor natural da vida, a luz da sua expressão a perder-se para uma névoa cinzenta. Não sei o que se passa comigo desde, então, mas não consigo sentir absolutamente nada. Sinto-me a boiar num corpo que não é meu, sinto a realidade fugir-me dos olhos, os objetos a ficarem cada vez mais distantes das minhas mãos. Tenho um peso nas minhas pálpebras que insiste em fechá-las e um monstro muito escuro e aterrador a saltar-me na cabeça, nos meus pensamentos. Estou esmagado por algo que desconheço, maior que eu, e não percebo nenhum sentido nesta coisa moribunda a que chamam viver. Tiraram-me a única coisa que me prendia à terra, a minha raiz foi-me cortada sem misericórdia e não sei mais como me segurar em pé. Pensei mandar-me à água juntamente com esta garrafa, não tenho nada a perder. Não posso mentir, a hipótese parece-me muito tentadora. Acabar-se-ia esta dormência e este marasmo e encontraria, quem sabe, a minha menina, envolta naquele pano branco que nunca a devia ter embrulhado. Mas não vou fazê-lo, não quero dar esse prazer à identidade manhosa e mesquinha que comanda isto tudo.
Não há Deus, que não há fado, não há justiça nenhuma nem tão pouca uma razão que nos prenda aqui, somos prenda aqui. Somos corpos. Somos matéria. Somos todos a mesma carne cujo único propósito é alimentar os bichos e parasitas que moram debaixo dos nossos pés.
Não há Deus, não há nada. Há vileza em todo o lado, nada mais. No final de contas, ternos de perpetuar e adubar a terra sobre a qual caminhamos.”
Não sei dizer o que aquela carta me fez sentir. Senti-me injustiçada, apunhalada pelas costas, senti cada palavra daquele desconhecido emissor. Tenho imensas perguntas na minha cabeça, nenhuma com sentido. Tenho uma linha salgado a escorrer-me pela face e quando me chega aos lábios, percebo-lhe o caráter azedo e salgado.
Olho em frente. O sol ergue-se com facilidade por cima da camada de oceano assustadoramente grande.
Brilha, lá de cima, como todos os dias.
E, envolta no doce marulhar e na espuma condensada da manhã, percebo que isso é tudo quanto sei nesta vida. Nada mais.

Beatriz
O Autocarro Literário 

A mãe dizia que era frescura mas ele sentia-o correr nas suas entranhas desde o dia em que nascera. Era mais do que ele próprio: era aquilo de que era feito, era a sua matéria.Sentia-o nas aulas de Português, nas suas divagações profundas, em cada linha de um livro que lia. Ele não o sabia explicar, mas descrevia-o como uma corrente de ligaduras mais forte que todo o seu esqueleto, sem a qual não podia viver. Era colossal, era-lhe transcendente.


Dado que a família não tinha condições para lhe comprar os livros que queria, ele
aprendeu a guardar os poucos centavos que a mãe lhe dava, quando ia comprar o pão. Ao fim de quase um ano, conseguiu, finalmente, comprar um exemplar usado de uma das primeiras edições d’A Terra Sonâmbula, de Mia Couto. Lia-o no autocarro a caminho de casa e na viagem para a escola e, como tinha medo que a mãe lhe afinfasse com a fivela por causa das frescuras, escondia o livro por baixo do último assento da camioneta num fundo falso que ele próprio fizera para proteger os seus cadernos de poesia dos olhares curiosos e preconceituosos dos seus pais e irmãos.

     Como a viagem ainda era longa, ao fim de umas semanas já tinha acabado a leitura. Guardou todas as anotações sobre as palavras que desconhecia, escondeu o livro – que conservara religiosamente – no último assento e, depois de sair do autocarro, subiu a pé os quatro quilómetros que davam para sua casa. Era uma subida muito íngreme e cheirava a papas de aveia queimadas e tabaco mastigado. Era um cheiro de tal modo insuportável que a subida se encontrava quase sempre vazia, à exceção dos indigentes, que cambaleavam pelos passadiços a arrastar as pernas e dormiam embrulhados em pedaços de cartão molhado e mofado de tal forma que nem os ratos se aproximavam. Tudo aquilo era um quadro triste e cinzento, mas cada vez mais o admirava com um olhar mais frio que penoso.

      Ao cimo da rua, rodeado por dois montes gigantes de esterco, encontrava-se a sua casa: era uma casa de tijolo mordido, sem cor e com tecidos velhos em cada uma das janelas. Ele entrou pela porta entreaberta, cumprimentou os irmãos que brincavam no chão cimentado e foi até ao seu quarto. Pousou a mochila sobre o colchão arranhado onde dormia e, depois de guardar as suas anotações no bolso, saiu de casa prometendo que não demoraria e foi em direção à biblioteca municipal. Lá, sentou-se numa mesa maciça e consultou um dicionário de Língua Portuguesa que costumava usar e a que dava o nome de António Emílio, em homenagem ao seu escritor favorito. Em tempos menos bons, era António Emílio que lhe estendia a mão e que lhe permitia abstrair-se de tudo à sua volta. Depois da escola, ou de todas as vezes que a mãe lhe dava com a fivela do cinto, era em António Emílio que ele se refugiava e com quem matinha conversas de horas. António Emílio tinha o hábito recorrente de lhe ensinar palavras difíceis, de lhas explicar e de o ajudar a falar melhor. Era, para ele, um verdadeiro amigo.

No dia seguinte, a caminho da escola, ele sentou-se no banco do costume e, sem que ninguém percebesse, levantou o fundo falso do banco e, num misto de confusão e entusiasmo, encontrou um conjunto enorme de todo o tipo de livros, organizados em fileiras, por ordem de tamanhos. Ele sentiu algo inigualável, como se uma pequena explosão de centelhas explodisse no seu peito. Permaneceu sentado, confuso. Olhou para o motorista do autocarro, num impulso inocente e viu-o piscar-lhe o olho. Tinha a certeza de que o tinha visto, mas não o podia jurar. Ainda se sentia confuso. Tudo lhe parecia irreal.





                                              Beatriz

06/06
 
O Último Povo Livre



Entre as estepes da Mongólia, encontra-se o último povo livre da Terra, descendentes do grande imperador mongol, Gengis Khan.

O espírito desta gente foi forjado durante séculos e nada no mundo será capaz de quebrar o seu laço com a natureza.


Há muito tempo atrás, os cavalos, que os mongóis tanto adoram, estavam amaldiçoados por espíritos malignos que os atormentavam e os tornavam indomáveis. Os seus domadores tentaram de tudo: armadilhas, rituais e até sacrifícios, mas nada resultou.

Já sem esperança, um dia, um xamã profetizou que iria nascer uma criança cujo destino seria talhado para grandes coisas, uma criança que iria liderar o povo mongol com tamanha força, que seria capaz de domar cavalos.
Passaram-se anos sem que a profecia se concretizasse, eram tempos difíceis, em que as várias tribos mongóis se defrontavam entre si.
Nas estepes, existiam dois grandes clãs rivais os To Bay e os Ya Long cujos líderes eram Grito de Prata e Olhos de Águia, respetivamente. Certo dia, quando Olhos de Águia liderava um ataque contra o clã To Bay, que ficava junto a um vale, foi ferido com gravidade e acabou por morrer em batalha. Com a morte do líder, os Ya Long tiveram que voltar para as montanhas. Quando chegaram, por muito que os anciãos não quisessem, tiveram que proclamar Nevada, o único filho de Olhos de Águia, chefe do clã. Todos achavam que Nevada não tinha nada a ver com o pai, diziam que era fraco, piedoso e novo de mais.  
Um dia, quando Nevada passeava pela floresta, encontrou um cavalo selvagem desorientado, preso numa armadilha. Inicialmente, ele estava com medo do cavalo, mas, apesar de saber que eram criaturas amaldiçoadas, viu nos olhos do animal um fundo de bondade e, sem pensar mais, libertou-o e este, num piscar de olhos, fugiu para a floresta sem que Nevada pudesse ver para onde ele ia. Quando voltou para a aldeia e contou a todos o que tinha acontecido, ninguém acreditou, pois como é que podia uma fera selvagem, que os atormentava há séculos, ter sido ajudada por alguém tão fraco e inexperiente. Triste por ninguém ter acreditado, foi-se deitar. No dia seguinte, ouviu, fora da sua tenda, um grande alvoroço, pensou, imediatamente, que estavam a ser atacados pelos To Bay, mas eram centenas de cavalos liderados por aquele que tinha sido ajudado pelo jovem.
Parece que o gesto de Nevada foi capaz de quebrar a maldição, estando agora os cavalos dispostos a ser domados. Naquele momento, todos, na aldeia, começaram a gritar o nome de Nevada. Após centenas de anos a ser atormentados por aquelas criaturas, passaram a ter total controlo sobre elas. Os anciãos reuniram-se de imediato com Nevada e afirmaram que aquela era a altura perfeita para atacar os To Bay, pois agora estavam em vantagem. Contudo, Nevada recusou tal ideia porque achava que tal ato só iria trazer mais dor e sofrimento. Então, ele decidiu que se iria reunir com Grito de Prata e lhe iria oferecer parte dos cavalos que estavam ao seu comando, em troca de um pacto de paz entre os dois clãs e a partilha das terras férteis do vale, que os Ya Long sempre tinham reivindicado como suas.
Assim foi, Nevada encontrou-se com Grito de Prata que, após algum tempo, aceitou as condições do acordo, pois sabia que nada era mais precioso, naquelas estepes, do que a possibilidade de cavalgar no dorso de um poderoso cavalo.
Desde então, homens e cavalos caminham juntos, lado a lado, pelas estepes da Mongólia.
                                                                                                      João Dias
06/06
 

O Lago Misterioso



-Mãe, achas que o verdadeiro amor existe?

-Porque dizes isso, minha filha? Algum namorado teu que te maltratou?

-Não é isso É que… Com o passar do tempo e com as experiências da vida, cada vez menos acredito nessa ficção. Penso que sejam histórias inventadas pelos poetas.

-Bem, minha querida, vou contar-te uma história da minha vila, de quando era pequenina.


Era uma vez, uma doce rapariga, de longos e sedosos cabelos ruivos que vivia numa remota mas simpática vila, no entanto, essa pobre rapariga era rigorosamente controlada e maltratada pelos pais. Certa noite, à chuva, os pais da menina obrigaram-na a ir sozinha em busca de cogumelos e especiarias na floresta. No entanto, essa menina acabou por se perder e entrou no “Bosque Perdido”.

-Espera Mãe, como assim o “Bosque Perdido”?

-Era um bosque muito escuro e era conhecido pelo desaparecimento de muitas pessoas.

-Ah! Esclarecida…

Após entrar, a jovem deparou-se com um caminho de pedras totalmente seco. Estranhamente, a chuva não conseguia atingir as pedras que constituíam o caminho, pareciam feitas de um mármore branco reluzente. Após uns momentos de admiração, a menina decidiu remover os seus sapatos encharcados de água e seguir o caminho que pensava ser mágico. Depois de uma longa caminhada, a moça deparou-se com um lago que parecia não ter fim, nem era possível avistar terra no horizonte, o que a levou a estranhar dado que desconhecera a existência de algum lago nas proximidades da vila. Ela continuou a caminhar até que avistou ao longe uma pessoa. Desamparada, a rapariga matutou sobre a decisão de caminhar em direção a ela mas de repente encheu-se de coragem e seguiu em sua direção. Era um jovem rapaz que parecia ter a mesma idade que a menina, ele tinha uns longos cabelos da cor da neve pura e tinha os olhos azuis mais claros que avistara em toda a sua vida. O jovem olhou para ela com uma expressão serena e convidou-a para se sentar ao seu lado. Depois de uma longa conversa, a moça acabou por se interessar pelo jovem, sentia algo que nunca sentira na sua vida, não queria acabar a conversa, queria permanecer ao seu lado, no entanto, já estava a ficar tarde e ela precisava de voltar para casa, então combinaram encontrar-se no dia do repouso de cada semana, e assim o fizeram. Um ano depois, no mesmo dia em que esses dois jovens se encontraram pela primeira vez, a rapariga teve uma discussão com os pais e fugiu para se encontrar com o moço, mas não se apercebeu de que os pais a perseguiam. A menina apercebeu-se, finalmente, de que estava a ser seguida quando se encontrava no caminho de pedra. Sabendo da situação, começou espontaneamente a correr para o local onde o casal se encontrara todas as semanas. Os pais, ao repararem que a moça começara a correr, tentaram acompanhar o passo para a alcançar. No entanto, quando chegaram ao local de encontro dos dois jovens, não avistaram ninguém. A rapariga tinha desaparecido…

-É essa a história que me querias contar? Então e o rapaz?

-O rapaz desapareceu com ela, minha filha.

-Mas mãe, isso não passa de um conto de fadas.

-Meu amor, isto é tudo verídico, confia em mim.

-Mãe como é que sabes?! Não passa de uma história contada na tua vila.

-Eu sei porque… Eu era essa menina… 
Bruno Cunha
06/06


                                                
                           
Uma moradia numa rua estreita, um dia de chuva cinzento e um assassinato. Um dia normal, portanto.
     Álvaro cambaleava o corpo pelo quintal da moradia e ia recolhendo informações à medida que um ou dois vizinhos penduravam a cabeça nas grades de ferro da casa dispostos a dizer o que sabiam. Além do cantar melancólico dos pássaros e do som áspero da sua camisa a roçar o casaco de camurça, Álvaro não ouvia um único som. Apesar da curiosidade, as vizinhanças pareciam respeitar a sordidez do caso: um corpo nu de uma mulher com aproximadamente a sua idade completamente esquartejado em cima da bancada da cozinha exigia um certo respeito. Era dos crimes mais hediondos que passara pelas mãos de Álvaro.
     - E o que mais viu quando entrou em casa, dona Olga? – a empregada de limpezas, e quem chamara a polícia momentos antes, mostrava-se visivelmente constrangida e assustada. Fora a primeira a encontrar o corpo morto da patroa.
     - O corpo da doutora estava na bancada e havia sangue por todo o lado. Os armários da cozinha, que eu ainda ontem tinha envernizado, estavam salpicados com gotas vermelhas muito escuras. E havia um papel no chão. Estava escrito com uma letra muito pequena e muito feia e dizia algo como “Só a sua ternura é tão natural” – a mulher fez uma pausa. Ajeitou o lenço bordado na cabeça e limpou o suor que lhe escorria pela testa cavada e prosseguiu. – Nojento, nojento! O corpo da doutora, o sangue, os armários, o bilhete…
     - E a bebé? Não a viu? – perguntou Álvaro, de olhos pousados na mulher.
     - A menina estava na sala, a brincar com a roca que a mãe lhe deu ontem. Tadinha! Tão nova e já sem mãe. Quem fez isto não se atreveu a tocar na bebé, graças a Deus! Uma menina tão pequenina, tão doce, tão inofensiva…
     - E o seu patrão? Não estava em casa quando tudo isto aconteceu?
     - Não, o senhor doutor está há mais de uma semana fora numa viagem de trabalho.
             Depois de agradecer o depoimento e de passar toda a manhã no local do crime, Álvaro saiu para almoçar. Ao sair da moradia reparou com atenção num bloco de azulejo afixado no muro da entrada onde estava gravada a indicação Cuidado com o Marido. A frase era estranha e dava a entender que algo de errado se passava com aquele casal. Álvaro tinha de falar com ele assim que chegasse de viagem. De qualquer das maneiras, de certeza que já estaria a caminho de Portugal.
     Eram nove da noite quando finalmente saiu da sede da polícia judiciária e foi para casa. Tomou um banho quente, fez a barba e aproveitou para espalhar loção corporal pelos braços secos pelo frio. Afinal, os homens também tinham direito ao conforto. Deitou-se no sofá e pensou um pouco sobre o que se passara naquele dia. Pensou na inquietação das pessoas com as caras coladas à grade, no ambiente sangrento e vil por toda a casa, na serenidade no olhar da bebé que brincava com a roca. Quase como se não estivesse preocupada, como se não tivesse medo, como se não estranhasse… Era uma bebé, sim, mas era normal ter-se mantido tão apática? Segundo os relatos recolhidos a bebé esteve em casa com a mãe o dia todo… E aquela placa de azulejo no muro da casa… Alguma coisa não batia certo mas parecia evidente de mais.
     O telefone tocou de repente. Álvaro esticou o braço para o agarrar e atendeu a chamada. Era o seu parceiro. Trazia notícias sobre o tal doutor. Parecia que nunca chegara a fazer nenhuma viagem… Parecia que nunca chegara a sair do país… Parecia que se tinham sido encontradas impressões digitais na roca da bebé…Parecia tudo tão evidente…
Beatriz
 04-04


Os raios de sol espreitaram pelas minhas persianas, indicando-me que o dia já tinha começado.

Abri calmamente os olhos para que me pudesse habituar à luz. Sentei-me então na cama e olhei em redor, apercebendo-me da ausência de James. O seu lugar estava ainda quente por isso percebi que não tinha saído há muito tempo, talvez apenas alguns minutos antes de eu acordar.
Levantei-me, então, e ao sair do quarto, ouvi um barulho na cozinha. Curiosa, caminhei nessa mesma direção, encontrando o meu marido a preparar o pequeno-almoço.
Marido… que palavra tão estranha e maravilhosa ao mesmo tempo! De acordo com o dicionário, marido significa cônjuge, esposo, alguém que nos ama e nos apoia de modo incondicional. E é isso mesmo que ele tem sido para mim. Ele faz-me feliz todos os dias. Somos casados há 2 anos, mas temos 6 de relação.
Temos uma história engraçada… Conhecemo-nos no secundário, e rápido nos tornámos melhores amigos. Lembro-me perfeitamente de que, no nosso primeiro encontro, James me levou à cabine onde ele e os amigos passavam música e onde nasceu a rádio que ouvimos todos os dias. Ironicamente, é a única estação de rádio sincronizada no nosso automóvel, pois funciona como uma espécie de memória viva que nos permite reviver toda a emoção da melhor música de hoje e dos últimos 10 anos.
- Bom dia! – James exclamou transportando-me de novo para a realidade.
- Bom dia!
- Com fome?
- Como se não me conhecesses – brinquei.
- Por essa razão é que preparei este mega pequeno almoço! Vamos precisar de energia para a viagem!
Olhei a mesa e o meu estômago roncou, o que nos fez rir. A comida tinha um aspeto delicioso!
- Obrigada! – disse, dando-lhe um abraço.
- Sempre às ordens! – sorriu – Estás preparada?
- Estou mais do que preparada! – disse, enquanto nos sentámos à mesa e iniciámos a refeição.
- Nem acredito que já estamos no final do ano…
- Nem eu… este ano passou num abrir e fechar de olhos!
James assentiu em concordância. – Já tens tudo pronto?
- Sim, e tu?
- Tudo preparado! Sendo assim, vou tomar duche para depois te poderes arranjar com tempo!
- Ok – sorri.
Antes de deixar a cozinha, James plantou um beijo calmo na minha testa, deixando um sorriso a dançar nos meus lábios. Saiu-me mesmo a sorte grande!
Levantei a mesa e lavei tudo, para que ficasse tudo arrumado. Caminhei de volta para o quarto. James saiu da casa de banho, já pronto e foi revistar as malas uma última vez, enquanto eu me arranjava.
Faltava cerca de uma hora para o voo, quando saímos de casa em direção ao aeroporto.
 - Hello, it’s me. – Cantámos em conjunto, soltando uma gargalhada.
Cantar não é o nosso forte, mas acho que o entusiasmo da viagem era a causa desta alegria matinal.

*
Depois de fazermos o check in e de estarmos sentados nos nossos lugares, ligámos os fones ao telemóvel e ouvimos música. Entrelaçámos as nossas mãos e disfrutámos a viagem.
O avião aterrou poucas horas depois. O meu relógio rondava as 16 horas, quando pisámos em terra firme. Apanhámos as nossas malas e fomos diretos para o hotel.
Instalámo-nos num quarto que ficava a meio do hotel. O quarto era acolhedor e estava decorado com mobílias modernas o que lhe dava um toque requintado e leve ao mesmo tempo.
Colocámos as malas a um canto e demos uma volta pelo quarto. De seguida, fomos até à varanda.
Estava completamente maravilhada com a paisagem que os meus olhos testemunhavam. Montes de um verde escuro, mas que despertava uma certa curiosidade em mim. O oceano de um azul escuro mas cristalino. A brisa calma que fazia os meus cabelos dançarem ao sabor do vento.
E no meio de todo aquele ambiente, nenhum de nós se atreveu a proferir uma única palavra. Ambos admirávamos a ilha espantosa que tínhamos escolhido para passar a passagem de ano – a ilha dos Açores.
Os braços de James abraçaram o meu corpo, deixando-me ainda mais descontraída.
- Gostas? – perguntou com uma voz calma e doce.
- Muito – respondi de igual forma. – E tu?
- Também – sorriu – Estás ansiosa?
- Nota-se muito? – perguntei e James soltou uma gargalhada abafada.
- Um pouco.
- Ups! – ri-me.

Mas é motivo para estares, afinal é o último dia do ano amanhã e correm boatos de que a festa neste hotel costuma ser das grandes!
 - Depois de um ano trabalhoso e tão intenso como este é mesmo disso que estamos a precisar – suspirei e virei-me, encarando-o.
- Concordo plenamente. – sorriu, pondo uma mexa de cabelo meu atrás da minha orelha. – Foi deveras intenso. Especialmente na empresa.
- Sim. Mas o que importa é que a empresa está muito bem colocada a nível nacional e isso é que importa!
 - O teu pai ia ficar muito orgulhoso – James sorriu, carinhoso.
Retribui-lhe o sorriso apesar da pequena pontada de tristeza.
Perdi o meu pai há cerca de 7 meses. Ninguém estava preparado para a sua partida, ou a maneira como esta aconteceu. Uma doença, sem cura, ou uma dolorosa como muita gente a designa e agora consigo perceber o porquê.
Os primeiros tempos após a notícia foram devastadores. Sentia-me triste, incompleta mas ao mesmo tempo revoltada e desiludida comigo própria por não ter percebido mais cedo que algo não estava bem. Que algo o impedia de dormir à noite. Ele felicitou-me no meu melhor e apoiou-me no meu pior e eu nada pude fazer para lhe retribuir.
Um mês se tinha passado quando, ao esvaziar as gavetas do escritório do meu pai, a minha mãe encontrou uma carta. Nela, estavam todos os desabafos do meu pai em relação à doença e para quem deveria ficar a empresa depois da sua morte.
O seu desejo era que eu continuasse o que ele não pôde acabar. E era mesmo isso que eu estava a fazer. James era o meu braço direito na empresa e ambos damos continuidade ao grande império dos Bettencourt.
- Eu gosto de pensar que sim – sorri.
- Eu sei que sim – sorriu-me de volta.
Abracei-o e voltámos para dentro.

*
O sol já tinha nascido quando o telefone do hotel tocou, dando-me a indicação que estava perto da hora do pequeno-almoço. Abri os olhos e levantei-me ainda sonolenta e fui até à estante onde o telefone se encontrava. No preciso momento em que me preparava para atender, desligaram. Revirei os olhos e suspirei frustrada. Decidi preparar-me antes de acordar James.
Levantei então os estores, deixando que os poucos raios de sol que ainda não se tinham escondido atrás de uma nuvem embater na sua face. Ele franziu a testa e segundos depois ouvi-o dar uma risada e praticamente enterrar a cara na almofada.
- Diana, isso não era necessário – resmungou.
- Hora de levantar – ri-me.
Depois de largos minutos naquela posição, James lá se levantou. Deixei-o preparar-se ao seu ritmo e aproveitei para fazer um telefonema para a minha mãe, apenas para me certificar de que estava tudo bem.
Eram por volta das 8 da manhã, quando fomos tomar o pequeno-almoço. Depois disso, aproveitámos a manhã para ir fazer um pouco de turismo pela ilha.
 Almoçámos num restaurante que ficava perto de uma das colinas. A comida era bastante saborosa. Nas ruas da cidade havia pessoas por toda a parte. Os cafés ainda piscavam com as luzes de natal e havia um certo aroma a doces a pairar no ar. Mestres da pirotecnia montavam os circuitos para o fogo-de-artifício. No hotel não era diferente – a parte do salão onde se ia dar a grande festa encontrava-se fechada, mas era possível ouvir a grande azáfama por trás das duas portas brancas.
James e eu tínhamos um programa de spa marcados para a tarde, para ocuparmos o tempo que faltava para a festa.
No fim da sessão, voltámos para o nosso quarto, onde nos começámos a preparar. Coloquei a minha mala sobre a cama e abri-a, retirando de lá o meu vestido, previamente selecionado para hoje, e os sapatos. Vesti-me e preparei o essencial à vida de uma mulher a partir do momento em que a palavra “festa” faz parte do cenário – cabelo e maquilhagem.
Demorámos cerca de uma hora e meia até estarmos totalmente prontos, mesmo a tempo do início do jantar. Descemos para o salão, agora de portas abertas e cheio de gente. Caminhámos pelo meio das mesas, procurando pelo nosso apelido.
A comida não demorou a ser servida e até agora a noite estava a ser excelente. O tempo estava ótimo, tanto na rua como dentro do salão. Falámos, rimos e comemos, que melhor há para se fazer?
Passada a hora de jantar, a pista de dança encheu-se de gente – famílias divertidas, idosos que não dispensam um bom passinho de dança, em geral ninguém resistia ao ritmo.
James olhou a pista e de seguida lançou o seu olhar na minha direção e eu percebi logo o que ele queria.
- Nem penses. – soltei uma gargalhada.
- Anda lá. – levantou-se e pegou nas minhas mãos, puxando-me para cima. Lá cedi e acompanhei-o.
- Só uma! – adverti.
- Sim, senhora. – sorriu.
Uma música calma começou a tocar. Descansei o meu rosto sobre o seu ombro e ficámos mais próximos. Não precisámos de dizer nada um ao outro, este silêncio dizia tudo.
No fim da música regressámos aos nossos lugares. De vez em quando lá dançávamos, mas o que queríamos mesmo era que a meia-noite chegasse.   

*
Dez minutos antes da meia-noite todos caminhámos para o terraço em frente ao salão, cada um com o seu copo de champanhe, aguardámos ansiosos.
Começámos a ouvir a contagem.
- 5,4,3,2,1, Feliz Ano Novo!

O céu encheu-se de cor. Abraços, beijos, choros e risos foram partilhados. Assistimos a cerca de 7 minutos de espetáculo e festejamos pela noite dentro. O novo ano tinha chegado e com ele novas aventuras e objetivos.  
                                                                                                                      Márcia
04-04

CEGUEIRA

Estou cego,
quem me cegou?
Não sei se é culpa minha
se da velhice que chegou.

Contudo cuido que descobri
- e tanto me magoa essa verdade –
que cego e surdo sempre vivi
e pobre d’alma e rico em vaidade.
Nunca via nem olhava senão para mim
e alimentava-me esta minha capacidade
de cegar conforme a ocasionalidade,
mas recentemente decifrei
que este alimento que certo em mim julguei
faz de mim um velho acrítico
que morrerá, mais cedo ou mais tarde, raquítico

Estou cego,
quem me cegou?
Não sei se é da velhice,
se da ignorância que s’instalou


Beatriz
04-04

Foi quando a lua parecia arder por baixo de uma campânula de vidro que as últimas pessoas recolheram à sua casa e eu fiquei sozinho. Tenho, reparo agora, a lâmpada estragada e percebo que essa é então a verdadeira razão pela qual aquela enxaqueca me assombrou. Tenho frio e doem-me as costas, constato. O velho gato gordo que costuma fazer-me companhia morreu recentemente e não tenho ninguém com quem falar. Sinto-me perdido e, ironicamente, sem luz. Tenho uma pastilha elástica colada ao pé e desespero por não a conseguir tirar. Faz-me comichão.
De repente, estaco. Oiço um barulho agudo ao fundo da rua. Tenho medo. Sinto-me indefeso e está escuro. Mesmo que quisesse, não me podia mexer. Sou um candeeiro de rua, lembras-te? O som aproxima-se, torna-se mais forte e junto com ele vêm vozes atabalhoadas e com cheiro a bagaço. Sinto o coração palpitar-me no peito. Chega então ao largo “o som”. Chama-se Tó, é casado, tem duas filhas e está bêbado pela quinta vez esta semana. Arrasta-se como se tivesse correntes de metal presas aos pés e cambaleia como uma bailarina na terceira idade. Traz ao colo um par de garrafas que tilintam e calculo que esse tilintar seja, mesmo assim, o som mais bonito que ouviu nos últimos tempos. Ele senta-se num banco à minha frente e chora. Nesse instante, sinto-o meu amigo. Tal como eu, está sozinho, tem medo e frio- Está preso e imóvel e sem luz. Sem sabermos, somos irmãos. Estamos acabados e entregues ao vento. Tomara que o vento não nos leve.

Beatriz
17/01


Manaus. “Não é propriamente o meu destino de sonho”, disse eu à hospedeira de bordo quando aterrámos. “Olhe que ainda se vai surpreender”, disse-me ela, de seguida. Devia ter uns cinquenta anos, era alta e esguia e sem perceber muito bem porquê lembrava-me o Natal. “Duvido” – retorqui.
À porta do Aeroporto Internacional Eduardo Gomes já me esperava Anderson Teodoro, de bigode farto e um cartaz na mão com meu nome. Estava encostado a um jipe verde-escuro de capota aberta e assobiava-me ao longe. Entrei no carro.
Chegamos à Floresta Amazónica em pouco tempo, Teodoro pediu-me que me instalasse numa cabine enquanto ele ia preparar o barco.
Entrei na cabana e olhei em volta à procura do meu pai. Quando o vi, estremeci. Estava velho, o cabelo cinza escuro molhado por cima da camisola desbotada. 
Sorria-me exageradamente e envolveu-me em abraços desmedidos. Agradeceu-me por ter vindo, prometeu-me que ia gostar da viagem. Suspirei.
Entrámos no barco que Teodoro entretanto preparara. Sentei-me a um canto e pus um chapéu de montanhismo na cabeça. O ar estava – e lembrei-me como se fosse hoje – emundado de centelhas que pareciam transformar-se em espuma quando lhes tocava. Estava quente e estupidamente húmido. Cheirava sobretudo a orvalho e algodão-doce. Quando Teodoro começou a remar, senti que todos os meus cinco sentidos se conjugavam num só, uma mixórdia de emoções que nunca, até hoje, consegui explicar. Descrevi essa sensação, anos mais tarde, como uma espécie de magia que nos assola de uma forma surpreendentemente positiva.
Cerca de vinte minutos depois, chegámos a terra. Levantei-me, ainda ligeiramente abalada, e caminhei.
O meu pai pediu-me que deixasse com Teodoro todos os meus pertences e eu acedi. Caminhámos por entre sequências de árvores que, sem que eu consiga explicar, pareciam cantar-me ao ouvido. Vi, por cima do ombro, Teodoro acenar-me. Andámos quase um quilómetro e as pernas começaram-me a doer realmente, quando passámos de um caminho em linha reta para uma subida colossal. O meu pai segurou-me o braço, quando nos aproximámos de um par formoso de rochas gigantes. Ouvi o som estridente e assustei-me.

Dei um passo em frente e vislumbrei uma bonita cachoeira, como o meu pai diria, que fazia a água dançar de uma forma que nunca vi.
Ainda hoje não consigo explicar bem o que aquilo para mim significou, mas sei que foi das melhores sensações que experienciei. Foi a melhor viagem da minha vida. Manaus.

Beatriz
15-12

Tubérculos são cofres naturais
de energias puras e vitais.
Energias, limpas e não mortais
e que na mão de um chefe se tornam reais.

“Pomme de terre” diz a alma francesa,
são produtos indispensáveis na cozinha portuguesa.
Em sopas e cozidos novos e velhinhos,
não a dispensam à mesa com certeza.

Evidente utilização, mas na forma
pouca perfeição. A sua norma
não encanta mas transforma a lembrança
de quem um dia já foi criança.
                                             João
15-12

Corre,
mas não corras demais que coxeais
Ri, 
mas não rias o bastante que anseias
Chora,
mas não chores de cicatrizes passadas
nem lamentes as aventuras desventuradas
que te consomem desagradavelmente
Morre de amores,
mas não morras demasiado
que o amor é danado
e não tardará em voltar
Teme,
mas não temas em arriscar
que o que parece longo desaparecerá
como o dia para a noite
a esquerda para a direita,
a vida para a cova estreita
Vive,
mas não vivas em prol do que é incerto
Berra,
mas não berres audivelmente
para o chão não latejar
e caíres desamparado
Sê,
e sê o mais que puderes
sem medo do que é certo ou errado

Beatriz
24-11


Tu resolves fugir de mim
deixando para trás tudo o que passámos,
partes as chaves que outrora nos uniram
com a intenção de nos dispersarmos.
A história do nosso passado
ocorreu a partir de um determinado erro
que nunca pôde ser ultrapassado
E que resultou no meu aferro a ti.
A ciência do amor
limita-se a uma antinomia de sentimentos
estruturado de mentiras e clamor
e resultando em ferimentos.
Bruno
24-11


Uma real confusão

O meu corpo embateu com o chão, fazendo uma nuvem de areia erguer-se pelo ar. Levantei-me e quase voltei a cair para o lado quando me apercebi da fatiota que tinha vestida. O que é que eu estava a pensar quando saltei por aquela janela? Isto é o que acontece quando se passa demasiado tempo a estudar História…
Sacudi o meu vestido cheio de folhos e de corpete apertado, e dei um leve suspiro antes de olhar em redor. Estava no meio de uma feira; havia tendas de comerciantes por todo o lado, carroças carregadas de frutas e vegetais e dançarinas que abanavam os seus corpos ao som da música medieval.
Caminhei por entre a feira repleta de gente. As roupas e costumes comprovavam os meus pensamentos. Ao longe um castelo enorme feito de pedra. Misturei-me entre as pessoas e saí junto ao caminho para o castelo. Apesar de não entender o que passava, estava a adorar tudo em redor... Talvez me mude!
Atravessei uma parte e parei junto à porta do palácio. Bati na mesma, esperando que alguém tivesse pena desta pobre rapariga e a viesse socorrer, mas não!
- Quem vem lá? – o guarda pergunta do outro lado da porta baixando a pequena portinhola e espreitando por lá.
- Hm.. Olívia. – murmurei.
- Olívia quem? – voltou a questionar.
- Olívia Benson.
- Pois… Olívia Benson não está na lista… por isso Donzela, pode ir de volta para d’onde veio.
- O problema é esse, é que eu… - fui interrompida pela portinhola a ser fechada.
Suspirei frustrada e caminhei para o jardim do lado esquerdo do castelo, sentei-me junto a um carvalho virado para o rio e atirei algumas pedras para dentro do mesmo. Fechei os olhos e pensei nos últimos minutos. Como é que eu vim aqui parar? Eu estava apenas a estudar para o exame final de História, fui à janela e puff! Aqui estou eu, a vaguear pela idade média sem poder fazer nada para voltar para casa.
No meio de tanto ruído causado pela minha mente, ouvi passos aproximarem-se de mim. Levantei-me e olhei na direção do barulho.
- Está ai alguém? – perguntei receosa.
- Desculpe, não queria assustá-la. – uma voz masculina soa. Era grossa e rouca mas deu-me uma sensação de relaxamento instantânea.
- Se não me queria assustar, porque continua escondido? – questionei.
- Tem toda a razão… - falou baixo, saindo de trás de uma árvore.
Observei a sua figura. Era alto, de pele branca com um leve tom bronzeado. Tinha vestidas as roupas habituais, de alguém da realeza. Na sua face havia uma barba pequena que lhe ficava lindamente. As suas feições bem esculpidas e os seus olhos castanho escuros levaram-me a concluir que era provavelmente o príncipe do reino.
- Qual é a sua graça? – perguntou encostando-se à árvore  que estava de frente para mim.
- Olívia. Olívia Benson. – disse.
- Olívia… é adequado – olhou-me de alto a baixo.
- Desculpe?! – olhei-o indignada.
O rapaz deu uma gargalhada. – Estou apenas a meter-me consigo! Sou o Edward.
- Não será príncipe Edward? – questionei erguendo uma sobrancelha.
- Foi assim tão óbvio?
- Um pouco – ri-me.
- E eu a pensar que ia conseguir dar-me com alguém sem ser tratado como membro da realeza.
- O que quer dizer com isso? Lá por ser da realeza não quer dizer que tenha de o tratar de forma diferente das outras pessoas. E para além disso… ser da realeza é muito fixe!
- Fixe? – questionou.
- Desculpe, esqueci-me de que não sabe o que é… - cocei a nuca. – Quer dizer que é uma coisa boa.
- Oh… obrigado. – sorriu. – Gostava que todos pensassem como a donzela. É que é um pouco difícil dar-me com alguém aqui… parece que das duas uma… ou têm medo e não se dão ou querem aproveitar-se da minha riqueza e poder.
- Parece que alguém está a precisar de um chocolate. – sorri, fazendo a atenção de Edward cair em mim. – Não é o único com problemas…
- Então?
- Pois, eu não sou daqui… E até é cómica a maneira  como aqui cheguei.
- Pode partilhar?
- Foi por uma janela.
- Por uma janela?
- Sim – ri-me.
- Queira explicar-se.
- É assim… Eu venho do século XXI, que, como sabe, é muito mais para a frente. Estava a estudar para o meu exame final de História. Fui à janela e puff! Aqui estou eu.
Edward olhou-me por vários segundos. – Sente-se bem Olívia?
- Sinto-me ótima!
- Tem a certeza?
- Tenho - assenti – Eu agradecia uma ajudinha.
- E como é que eu poderia ajudar?
-Primeiro, corte o vós. Na minha era isso já não se usa, e, segundo, eu preciso de voltar para casa.
- Não entendo onde é que eu me enquadro ai!
- Talvez conheça alguém que me possa ajudar!
Edward olhou-me pensativo. – Talvez.
- Então isso é um sim?
- Nunca ajudei um estranho antes. E já ajudei muita gente!
- Hei, eu não sou um estranho. Sabe o meu nome e por que razão aqui estou.
- Pronto, já percebi... Eu ajudo!
- Obrigada! – sorri.
- Vamos lá então! – levantou-se.
- Tão impaciente… - murmurei e levantei-me.
Edward caminhou pelo meio da floresta e eu segui-o. Entrámos no castelo pela porta das traseiras, onde ficava a cozinha.
 Passámos pelo meio de muita gente, todos eles se curvavam à passagem de Edward pelo seu meio. Acho que me podia habituar a este estilo de vida. Afinal, a época medieval é a minha favorita.
- Vamos até ao aposento do meu pai. Ele vai poder ajudar-nos.
-Do… R-R-Rei? – olhei-o.
- Ficas nervosa quando falo do meu pai e ficaste normal comigo? – ergueu uma sobrancelha.
- Oh… é diferente – dei de ombros
-Porquê – perguntou.
-Oh esquece…vamos ou não?
- Vamos … vamos
- Subimos várias escadas até chegarmos a um corredor. No fim, dois guardas parados à porta olham-nos e vigiarem todos os nossos movimentos.
- Boa tarde – Edward- disse
- Vossa alteza – curvaram-se, dando-nos passagem.
Entrámos no quarto. O rei estava sentado na secretária assinar qualquer coisa. Quando Edward fechou a porta, a atenção do rei caiu sobre nós. 
-Ah, Edward por aqui? E quem é atua amiga?
- Pai, esta é a Olívia. Ela precisa de ajuda.
-Oh … e como posso ajudar?
-Bem… - contei-lhe a minha história. Ao início não acreditou, mas depois de lhe dar algumas provas (como datas futuras) dispôs-se a ajudar-me.
- Bem, podes ir ao feiticeiro do reino. Ele saberá o que fazer.
- Muito obrigada, Vossa Alteza.
- Não agradeças – só tenho pena que não fiques. Aqui o Edward podia casar contigo.
- Não obrigado. Dissemos nós ao mesmo tempo.
- Ai o amor jovem…
Fizemos ambos uma careta e saímos dos aposentos. Descemos a escadaria toda até ao fundo. Chegámos a uma porta de forro e entrámos. Em várias prateleiras, vários frascos. No canto, um homem encostado à parede que se aproximou analisou-nos.
-O príncipe? Por aqui?
-Precisamos da sua ajuda.
- E eu em que posso ajudar?
Expliquei tudo novamente se calhar devia escrevê-lo e mostrar para poupar saliva.
-Ah, eu posso ajudar.
Do nada arrancou-me um cabelo.
-Au! – disse alto.
-Desculpa, foi sem intenção, mas precisava dele – riu-se.
Rolei os olhos e olhei Edward. Aproximamo-nos do caldeirão. Ele disse umas palavras loucas e fez magia. Bebi a mistura.
- Agora é só saltares aquela janela. Se foi uma janela que te trouxe, é uma janela que te leva.
- Respirei fundo aproximando-me.
- Bem, parece que acabou – sorri olhando Edward – obrigada pela ajuda!
-Obrigada pela hora e meia de amizade – sorriu – toma! Entregou-me o seu anel como recordação.
- Toma. – Deixei-lhe o meu colar – abracei-o e saltei.
Abri os olhos, novamente de volta, vendo o meu quarto e tudo como tinha deixado. Meti o anel na mão, fechei os livros e apaguei a luz. Chega de estudo por hoje. 
Márcia
24-11

IRONIA da VIDA

Foi no dia da morte da minha mãe que percebi o quão irónica esta vida é. Inicialmente, fomos a novidade da aldeia, as mais faladas, as aberrações. Eu era a pobre filha da mulher com quem nenhum homem quis casar, era filha de mãe solteira, era filha de uma mulher falada por toda a gente. Quando entrava na igreja, ao domingo, as senhoras de família retiravam-se e levavam consigo os pequenos que, ensinados desde sempre a respeitar a palavra cristã, menosprezavam uma infeliz rapariga e sua mãe que nada haviam feito para merecer tal punição.

Quando um aristocrata rico – Dom Filipe de Castanho – apareceu na aldeia com os seus dezassete homens vestidos a preceito, eu percebi que estava destinada a mais do que aquela vida mesquinha.

Dom Filipe procurou por todas as casas uma pessoa que nunca chegara a conhecer, de quem não conhecia um único traço do rosto. Dotado desde sempre por pensamentos liberais, não vacilou nem por um instante, quando me apresentou à corte como sua filha, uns dias depois, em Lisboa. Foi a primeira vez que viajei de carruagem.

Três meses depois, a mãe regressou à aldeia onde estaria destinada a terminar os seus dias. Eu fiquei na corte, recebi educação e etiqueta e comecei a lavar-me com mais frequência e a pôr pó-de-arroz nas maçãs do rosto. Aprendi a forma correta de cumprimentar as pessoas e comecei a frequentar os clubes de chá das filhas das burguesas. Uma tal Petra foi a que sempre me chamou mais a atenção. A forma como se descalçava nas reuniões, como desapertava a cinta minuciosamente apertada pelas aias e o jeito descomprometido como falava das coisas suscitava em mim sentimentos de desaprovação que nunca pensei ter. Um dia, quando todas as outras filhas de burgueses saíram para andar de cavalo, chamei Petra à parte para lhe perguntar o que sempre tivera curiosidade de saber:

- Por que te comportas de forma tão desadequada?

A resposta que Petra me deu, ainda hoje ressoa pelo mais íntimo de mim.

- Porque, cara bastarda, nesta vida só podes ser uma coisa. Eu sou o que quero ser!

Foi depois de ouvir isto que comecei a repensar a minha existência. E foi então que percebi: eu não queria ser aquilo!

Aproveitei um descuido da ama e meti-me numa carroça que ia partir para o centro da cidade. Quando, ao longe, avistei a aldeia onde cresci, saltei da carruagem e procurei por todo o lado a minha casa. Avistei-a, por fim, ao longe, num sítio que estranhamente já não recordava assim. Entrei pela porta entreaberta e chamei pela mãe. Ia pedir-lhe desculpas, dizer-lhe que me tinha arrependido da minha escolha, que preferia ser pobre a viver sem ela.

Silêncio.

Não vi a mãe em lado nenhum. A janela da cozinha, mais à frente, emanava um brilho invulgar. Aproximei-me, esperançosa de, ao espreitar por entre o vidro, encontrar a minha mãe no quintal, a estender a roupa, a regar as plantas…

Mas não.

Quando olhei pela janela, estaquei, gelada. 

Do outro lado do vidro, vislumbrei a minha mãe, deitada no chão com um buraco vermelho escuro na testa. Olhei em volta e vi um cartuxo perdido na relva, completamente abandonado. Pobre mãe, se foi morta pela espingarda ou pelos comentários ruidosos que ouviu quando a deixei, não sei. Pobre mãe, partiu sem saber que eu havia regressado. Pobre mãe, partiu a achar que a tinha abandonado. 

Foi no dia da morte da minha mãe que percebi o quão irónica esta vida é.
Beatriz
8-11